quarta-feira, 21 de maio de 2008

A Idéia da Peça e o Trabalho do Ator em Stanislavski

A Idéia da Peça e o Trabalho do Ator em Stanislavski
Nicolai M. Gorchakov


Em 4 de setembro de 1924, Gorchakov, começando seus estudos no Teatro de Arte de Moscou, recém-formado como diretor pelo Estúdio de Vakhtanghov, apresentou para Stanislavski a comédia A Batalha da Vida, direção de conclusão de seu curso. Depois da apresentação, relata Gorchakov, Stanislavski teceu como introdução à análise propriamente dita do espetáculo, os comentários abaixo. Foi para mim uma grande alegria ver na boca do mestre considerações sobre as quais venho insistindo muito nos últimos anos. Tenho por certo que o entendimento e o comprometimento intelectual com o espetáculo é fator determinante para a qualidade da atuação. Roberto Mallet.


"A fim de que eu possa falar a vocês com toda franqueza", começou Stanislavski, "têm que responder-me à seguinte questão: quantas vezes gostariam de representar essa peça?"

Sua pergunta surpreendeu-nos a todos, e por isso não sabíamos como responder.

"Sei que vocês gostam dessa peça", continuou, "pois já representaram-na muitas vezes com êxito. Eu também gosto dela. O diretor analisou-a com acerto. Há muitos momentos comoventes e cheios de sinceridade na atuação individual de vocês. Vocês merecem representá-la. Mas estou interessado em saber quantas vezes gostariam de fazê-lo. Quantos anos? Pretendem que a mantenhamos no repertório do Teatro de Arte de Moscou?

Sentimo-nos numa sinuca. Alguns de nós até começaram a rir por puro desconcerto. Nossos sonhos não tinham ido tão longe.

"Só esperávamos que ela pudesse ser mantida durante uma temporada", eu disse.

"Isso é mau", replicou Stanislavski. "O artista deve trabalhar com a intenção de que sua criação perdure. Vamos, digam-me, gostariam de representar essa peça duzentas vezes?"

"Claro que sim, Constantin Serguêievich."

"E fariam alguns sacrifícios para tanto?"

Embora a pergunta tenha sido formulada em um tom cálido e afetuoso, percebemos a sua seriedade e instintivamente permanecemos em silêncio. Até o ator mais jovem e inexperiente sabe quão fatal pode ser sua resposta. Mas sendo eu o mais velho da companhia, e sabendo que a questão dos "sacrifícios" era dirigida a mim, em minha condição de diretor, compreendi que tinha que falar.

"Peço-lhe que não se incomode conosco por não respondermos à sua pergunta imediatamente, Constantin Serguêievich", eu disse. "Você provavelmente nos compreende melhor do que nós mesmos. Diga-nos por favor o que precisamos fazer para melhorar nossa atuação e conservar a peça no repertório o maior tempo possível."

"Estão todos de acordo com Gorchakov?", perguntou Stanislavski. Logo continuou: "Não conheço vocês muito bem. Encontramo-nos pela primeira vez ao redor da mesa de trabalho e não quero pôr a perder o começo de sua carreira de artistas. Prometo-lhes que a peça será representada e que vocês estarão nela, mas não imediatamente."

Respondemos unanimemente que faríamos tudo o que ele achasse que devíamos fazer.

"Tratem de não ter que lamentar essa decisão dentro de uma hora", respondeu com certa ironia.

Logo continuou: "Perderei muito pouco tempo em analisar os méritos de sua atuação. Por favor, não me levem a mal. O tempo é breve de agora até o momento em que a peça deve ser apresentada de novo. Todos vocês compreenderam bem o autor, e o diretor conduziu com acerto o trabalho de criação dos personagens de Dickens. Vocês permaneceram fiéis ao tema da obra e, por isso, a trama e a idéia ficaram claros para a platéia. Trabalhando em consonância com o diretor, encontraram o ritmo adequado e resolveram seus problemas de atuação com sinceridade e entusiasmo. A atuação de vocês estava inspirada por uma devoção juvenil. Isso chega ao público, encanta-o e faz com que passe por alto os defeitos. Vocês têm defeitos? Creio que sim, mas não estão conscientes deles. Não os sentem... pelo menos ainda não. Minha tarefa consiste em apontá-los, convencer-lhes de que têm que combatê-los, livrar-se de alguns e transformar outros em benefícios. O principal defeito é sua juventude. Estranham que lhe diga isso? Não conseguem seguir o fio de meu pensamento? Vou me explicar.

"A juventude é uma maravilhosa se vocês puderem conservá-la sempre, mas isto é difícil de se fazer. É claro que me refiro à juventude interior. Não há uma só mulher de idade madura entre vocês. Nessa montagem, mesmo os papéis de anciãos são representados por atores jovens. Se essa mulher de idade madura de que eu falava estivesse sentada entre nós, nós a ouviríamos suspirar profundamente e com simpatia em resposta às minhas palavras.

"Bem, agora analisemos o que significa ser jovem em cena. Isto não tem nada a ver com maquiagens nem com a maneira de se vestir. Conhecemos muitos exemplos em que os figurinos mais coloridos e a maquiagem mais juvenil só contribuíram para pôr em maior evidência a idade do ator. Ao mesmo tempo, sabemos que um ator ou atriz maduros podem desempenhar um papel juvenil sem a ajuda de maquiagem ou de figurinos chamativos, desde que ele ou ela conheçam o segredo da juventude teatral. Vocês devem estar surpresos agora, perguntando-se qual o sentido de falar-lhes isto sendo vocês jovens, e justamente quando acabo de elogiá-los pelo frescor de sua representação. Digo isto agora porque vocês não têm a menor idéia de quão rápido vocês e sua atuação podem envelhecer sem que sequer se dêem conta disso.

"A primeira coisa essencial para conservar jovem uma representação", continuou, "é manter viva a idéia da peça. Ela é a razão pela qual o dramaturgo a concebeu, e é a razão pela qual vocês decidiram representá-la. Não se pode nem se deve atuar em cena, não se pode nem se deve produzir uma peça pelo prazer de representá-la ou simplesmente de produzi-la. Vocês têm que sentir-se comovidos em sua profissão. Têm que amá-la com devoção e apaixonadamente, não por si mesma, não por seus lauréis, não pelo prazer e o deleite que lhes dá como artistas. Têm que amar a profissão que escolheram porque ela lhes dá a oportunidade de comunicar idéias que são importantes e necessárias para o público. Porque lhes oferece a oportunidade de, através das idéias que vocês dramatizam e através dos caracteres que personificam, educar o público e convertê-lo em membros da sociedade mais sensíveis, mais sábios, mais úteis e melhores. Eis aqui um problema imenso para o teatro, especialmente em nossos tempos, quando muitíssimas pessoas vêm pela primeira vez ao teatro. Se esse público novo vê e ouve as respostas para seus problemas, aprenderá a amar o teatro e o aceitará como uma coisa própria. Portanto, o primeiro passo para conservar a juventude teatral é responder claramente para si mesmo à pergunta: Por que represento esta peça?

"Hoje vocês sabiam o propósito que os levava à representação. Queriam impressionar-me como atores. Cumpriram seu propósito. Quando vocês fizeram sua representação na Escola Vakhtanghov, também conheciam o propósito: queriam ser reconhecidos como atores maiores de idade, já graduados. Cumpriram este propósito também. Mas o que foi suficiente ontem, o que foi suficiente hoje, não o será amanhã, quando apresentarem a peça para o público em geral. É importante para os espectadores que os pensamentos e a vida deles estimulem vocês e que os pensamentos que enchem a vida da cena estimulem-nos. Ao público importa a idéia do autor e a apresentação e a interpretação que vocês façam dela como artistas de teatro. A idéia tem sempre que ser vital e importante para o público de hoje, e é necessário que vocês sejam capazes de reproduzi-la com um tom verdadeiro. Devem manter viva a idéia e ser inspirados por ela em cada representação. Este é o único caminho para conservar a juventude na representação e ao mesmo tempo a juventude de vocês como atores. E verdadeiro trabalho de criação da idéia da peça (insisto na palavra verdadeiro) exige do artista amplo e variado conhecimento, constante auto-disciplina, a subordinação de seus gostos e hábitos pessoais às exigências da idéia, e algumas vezes também certos sacrifícios."



In "Las lecciones de `régisseur´ de Stanislavski", Nicolai M. Gorchakov, tradução em espanhol (sem o nome do tradutor), Ediciones Pueblos Unidos S.A., Montevideo, 1956, págs. 45-48. Tradução de Roberto Mallet.

Fonte: Grupo Tempo

CONCEITO DE AÇÃO DRAMÁTICA

CONCEITO DE AÇÃO DRAMÁTICA
Roberto Mallet


Este texto não é um ensaio, e muito menos um estudo. Trata-se simplesmente de algumas anotações sobre a questão da ação dramática que redigi quando participei da 10ª Mostra Joseense de Teatro, em São José dos Campos, da qual participei como jurado e debatedor (ao lado de Antônio de Valle e Reynaldo Puebla). Seu objetivo é antes apontar direções para futuros estudos do que fazer uma reflexão completa e exaustiva sobre esse tema.

Muitos de nossos atores não compreendem adequadamente o que seja uma ação dramática. De fato, tenho constatado esse equívoco na maior parte dos espetáculos a que tenho assistido nos últimos anos, e até mesmo em escolas de arte dramática. E se na cena propriamente dita muitas vezes não encontramos sequer um vestígio de ação dramática, os debates realizados nos Festivais e Mostras indicam que o seu próprio conceito é freqüentemente confuso e indeterminado. é claro que se não temos nenhuma idéia do que seja ação, não há a menor possibilidade de encontrarmos sua realidade em cena.

Essa falta de clareza conceitual faz com que a palavra "ação" surja no discurso de muitos com uma certa atmosfera "mística", como se sua presença dependesse de outras realidades também mistificadas como "inspiração", "talento", "eleição", etc. é preciso descartar definitivamente a idéia romântica de que o artista é um favorito das musas, um escolhido dos deuses, tendo por tarefa e "missão" ofertar ao mundo os frutos de seu gênio. A obra de arte é resultado de muito esforço, trabalho e dedicação.

Esforço e trabalho, entretanto, por mais necessários e indispensáveis, não bastam. é preciso técnica, quer dizer, é preciso saber o quê e como fazer. No caso do ator: saber o que é ação e como agir em cena.

Diz Aristóteles que a tragédia (e podemos estender isto a todo gênero teatral) não é principalmente imitação de homens, mas de ações e de vida. "O mito (a trama dos acontecimentos e das diversas ações), continua o filósofo, é o princípio e como que a alma da tragédia." (1)

A ação portanto é a matéria básica do teatro e também do trabalho do ator. E podemos definir ação como todo e qualquer movimento (não necessariamente físico) que é fruto de uma vontade, e que visa um determinado objetivo (visualizado pela inteligência). Nem todo movimento realizado pelo homem é uma ação. Para que o seja, é necessário que esse movimento resulte de um querer alcançar um determinado objetivo conhecido pelo sujeito.

A ação humana tem uma raiz imaterial; origina-se naquilo que há de mais alto e nobre no homem, no que tradicionalmente denomina-se de "espírito": vontade e inteligência. A vontade quer alcançar um bem que é conhecido pela inteligência. Notemos que esse bem é percebido pelo sujeito como algo que lhe falta, algo que, se possuído, lhe trará certa felicidade.

Assim, a ação tem um caráter transcendente. Não é realizada por si mesma, mas como um meio que visa alcançar determinado fim. Se não considerarmos essa transcendência, o conceito de ação torna-se incompreensível.

Como disse Hegel, falando especificamente de dramaturgia, a ação dramática "é a vontade humana que persegue seus objetivos, consciente do resultado final". (2) Romeu, apaixonado por Julieta, quer unir-se a ela, fazer dela sua esposa; Macbeth quer ser o rei da Escócia; Hamlet quer vingar o assassinato de seu pai, restabelecer a justiça no reino da Dinamarca. Tudo o que essas personagens fazem em sua trajetória dramática relaciona-se com seus respectivos objetivos (e, secundariamente, com seu caráter). Romeu, por exemplo, invade o jardim do palácio dos Capuleto, declara-se a Julieta, tem uma entrevista com Frei Lourenço pedindo sua intercessão, pede a Julieta (através de sua ama) que vá "confessar-se" com Frei Lourenço, etc.; Hamlet finge estar louco, utiliza-se da trupe de atores para confirmar o assassinato de seu pai, agride Ofélia (para livrar-se do impedimento que seu próprio amor representa), mata o espião que se esconde atrás da cortina do quarto de sua mãe...

Creio que o exposto acima basta para que se tenha uma idéia clara sobre o conceito de ação em dramaturgia. (3) Não é suficiente, entretanto, para que compreendamos o papel da ação como matéria para o trabalho do ator. é provável que muitos dos espetáculos daquela Mostra nos quais nós, debatedores, apontamos uma ausência de ação, sejam obra de atores e diretores que já têm, com maior ou menor clareza, esse conceito de ação. Acontece que tal compreensão intelectual, por mais indispensável que seja, não é suficiente para abordarmos a construção de uma cena. é preciso que saibamos também como essa mesma dialética entre vontade e finalidade encarna-se no trabalho do ator.

Ao falarmos da ação do ator em cena, o discurso torna-se necessariamente mais denso e mesmo mais obscuro, pois trata-se agora de uma realidade concreta, que não pode ser esgotada pela análise pura e simples, e exige do leitor a experiência dessa mesma realidade, tanto no teatro como na vida. Em virtude do caráter episódico deste texto, posso apenas indicar alguns pontos que deverão ser pesquisados, desenvolvidos e completados pelo leitor.

Em primeiro lugar, tudo o que o ator faz em cena deve ser ação, ou seja, em tudo que ele faz estão envolvidas as faculdades vontade e inteligência. O homem, porém, não possui apenas essas faculdades; ele também tem memória, imaginação, sentidos. Cada uma dessas operações corresponde a uma ordem de ser: o homem é espírito (vontade e inteligência), alma (memória/imaginação) e corpo (sentidos). Essas ordens entretanto não são compartimentos estanques, isolados, mas integram-se todas em uma totalidade. Quando eu digo, portanto, que tudo o que o ator faz em cena deve ser ação, quero dizer que em tudo o que ele faz deve haver uma integração dessas várias faculdades, com a particularidade de que o foco para onde elas convergem é o corpo do ator.

Isto é naturalmente assim. O que acontece na alma de um homem tem ressonâncias em seu corpo, de maneira que, quando vejo alguém faço intuitivamente uma leitura das tensões e moções que inscrevem-se em seu corpo e, assim, tenho uma idéia mais ou menos clara do que se passa em sua alma. Todos nós temos essa experiência, especialmente quanto às pessoas que nos são mais próximas.

Agora, no caso do ator, essas tensões e moções físicas devem ser visíveis, e portanto é preciso que sejam como que aumentadas, amplificadas, resultando em um nível de energia e de esforço bem maior do que os utilizados no nosso dia a dia.

Todo pensamento, todo movimento feito em cena que não seja uma ação dramática interfere na escritura cênica e é lido pelo público, mesmo que este não tenha consciência clara dessa leitura. Todo pensamento e todo ato inscrevem-se no corpo do ator; se, ao lado da seqüência de ações dramáticas desenvolvida pelo ator, houver uma variedade de pensamentos e movimentos que nada têm a ver com a cena, o resultado disto assemelha-se a um desenho cheio de borrões e de linhas absurdas e inúteis, a ponto de o espectador ficar completamente confuso, sem saber o quê deve ser lido e muitas vezes sem ter nenhuma indicação de para onde deve dirigir sua atenção.

Esta é uma descrição paroxistica, porque de fato o que geralmente acontece é um desenho bastante incompleto, uma linha aqui, uma mancha acolá, sem unidade e integridade. Acontece uma ação agora, outra mais tarde, e entre elas alguns momentos de simples atividade, de movimentos gratuitos, de tentativas de "expressar sentimentos", ou mesmo de pura ausência.

Um outro ponto a assinalar é a crença extremamente difundida entre os nossos atores de que a interpretação teatral é construída sobre os sentimentos, como se fosse possível manipular diretamente as nossas emoções. Isto é um engano e leva a uma interpretação mentirosa e cheia de clichês. Os sentimentos e emoções são sempre resultado da ação do ator sobre seu próprio corpo, da manipulação da energia, da distribuição das tensões musculares, do movimento interno (muscular, nervoso) que resulta do foco da vontade sobre um determinado objetivo ficcional.

Essa idéia de que a matéria do ator são os seus sentimentos deve-se a uma leitura equivocada da obra de Stanislavski. Os capítulos 2 e 3 de A Preparação do Ator são uma obra-prima na descrição dos principais erros que os atores cometem em cena e na definição da ação física como matéria fundamental para o ator. Limito-me aqui a citar a passagem em que o mestre russo fala mais especificamente sobre a questão que vimos tratando (o sentimento).

"Em cena, diz o diretor Tórtsov depois de um mau sucedido teste de seus alunos, não corram por correr, nem sofram por sofrer. Não atuem de um modo geral, pela ação simplesmente, atuem sempre com um objetivo." E logo depois da explanação, numa cabriola pedagógica, ordena aos atores: "E agora subam ao palco e façam!"

Os alunos vão para o palco e imediatamente incorrem nos dois erros básicos cometidos pelos atores: buscam ou "ser a personagem" ou "sentir as emoções da personagem". Terminado o exercício, Tórtsov chama três atores: "Sentem-se aqui mesmo nestas cadeiras, onde posso vê-los melhor, e comecem: você vai sentir ciúmes, você vai sofrer e você entristecer-se, apenas expondo esses estados de alma, simplesmente por eles mesmos." E Kóstia, o aluno-narrador, conta: "Sentamo-nos e logo percebemos como era absurda a nossa situação. Enquanto eu andava de um lado para o outro, retorcendo-me como um selvagem, era possível acreditar que havia algum sentido naquilo que eu fazia, mas quando me sentaram numa cadeira, sem nenhum movimento exterior, patenteou-se o absurdo da minha interpretação."



"Bem, o que é que vocês acham? perguntou o Diretor. - é possível alguém sentar-se numa cadeira e, sem nenhum motivo, ter ciúmes? Ou ficar todo emocionado? Ou triste? Claro que é impossível. Fixem esta regra de uma vez por todas em suas memórias: em cena não pode haver, em circunstância alguma, qualquer ação cujo objetivo imediato seja o de despertar um sentimento qualquer por ele mesmo. (...) Quando escolherem algum tipo de ação, deixem em paz o sentimento e o conteúdo espiritual. Nunca procurem ficar ciumentos, amar ou sofrer, apenas por ter ciúme, amar ou sofrer." (4)

é bem verdade que algumas expressões usadas por Stanislavski podem dar lugar a equívocos. E isto não só em razão de uma formulação inadequada de seu pensamento, mas também porque o seu "sistema" estava em constante evolução, e afirmações que lemos em A Preparação do Ator surgem reformuladas, ampliadas e algumas até mesmo negadas em obras posteriores.

Em resumo, podemos aplicar uma regra fundamental da escritura dramatúrgica ao trabalho do ator: "a personagem não deve dizer quem e como ela é; isto é revelado através do que ela faz e das situações que ela vive em cena." Se há uma ação concreta e adequada em cena, o público saberá decodificar e compreender o que se passa nas almas das personagens.

Muitas vezes, ao invés de agir, queremos "significar", fingimos que estamos sentindo ou fazendo alguma coisa, e para tanto usamos movimentos aleatórios, esgares, respirações, quando não chegamos aos clichês e às micagens mais óbvias; em outras palavras, em vez de fazer, mostramos que estamos fazendo. Nos dois capítulos acima citados vocês poderão encontrar vários exemplos desse erro.

Para finalizar, vejamos um exemplo de uma seqüência de ações em "Romeu e Julieta". Tomemos o início da cena II do segundo ato (a famosa cena do Balcão). Na mesma noite em que conheceu Julieta, Romeu dirige-se ao palácio dos Capuleto e penetra em seu jardim. Quer rever Julieta e, se possível, falar-lhe. Fiquemos apenas com esse momento, a entrada de Romeu e seu deslocamento até as proximidades do palácio, e imaginemos algumas formas de abordar essa cena.

1. Raciocinemos em termos realistas. Dissemos mais acima que Romeu quer unir-se a Julieta; poderíamos denominar este objetivo da personagem de "objetivo final". Ela entretanto precisará realizar outros objetivos mais específicos, que representam meios que conduzem ao objetivo final. Para abordar a cena que estudamos, portanto, não basta ter em vista apenas o objetivo final. Isto fatalmente falsearia a interpretação. Um ator que entrasse em cena querendo "unir-se a Julieta" simplesmente não saberia o que fazer, e provavelmente deslizaria para um objetivo falso (mostrar-nos os sentimentos da personagem, por exemplo). Ele pode então escolher o objetivo específico "rever Julieta" (alcançado este, o novo objetivo poderá ser "falar com ela", e assim por diante). Agora, ao entrar em cena, Romeu não sabe onde está sua amada; para revê-la, é preciso antes localizá-la. E mais, ele encontra-se em terreno inimigo. Há um objetivo anterior a encontrar Julieta, que é não ser visto. Romeu não pode fazer nenhum ruído. O ator então entraria em cena tendo em mente o objetivo principal de rever Julieta, deslocando-se com todo o cuidado a fim de não ser visto (e também porque é noite, e o terreno lhe é desconhecido). Mesmo que o palco esteja vazio, ele precisa saber se o terreno em que pisa é gramado, areia, pedra, etc., pois as sensações que se tem ao pisar esses vários tipos de terreno são diferentes, bem como a maneira com que o corpo desloca-se aos percorrê-los. Ele também pode definir o que a personagem ouve ao longo do trajeto (seus próprios passos, um pássaro, vozes no interior do palácio - de quem? -, um chafariz), que cheiros percebe... As possibilidades são inumeráveis. Note-se que todos esses detalhes imaginários servem para a construção da cena; não há nenhuma necessidade de que sejam percebidos e decodificados pelo público. O importante é que o ator esteja envolvido com uma seqüência definida de pequenas ações que o conduzirão até o momento em que verá Julieta sair ao balcão.

2. A seqüência poderá ser abordada de maneira não-realista; através de metáforas, por exemplo. Romeu está apaixonado; poderíamos dizer que ele "está nas nuvens". O ator poderá entrar imaginando que está andando sobre nuvens, e também aqui suas imagens terão que encarnar-se, ou seja, os pés têm que "sentir" a consistência e a temperatura da nuvem, a pele sentirá, digamos, o calor da luz do sol, ele ouvirá a certa altura o ruído distante de um trovão, etc.

3. O ator também poderá definir uma seqüência de tensões e micromovimentos musculares, como uma dança que é realizada no interior do corpo, sem deixar que o público perceba o desenho dessa dança.

Em todo caso, o fundamental é que o ator tenha uma seqüência de ações definida (e detalhada) que possa conduzi-lo; que ele saiba a cada momento o que a personagem quer e o que ela está fazendo para alcançar esse objetivo, de maneira que sua interpretação tenha uma unidade e flua ininterrupta do início ao fim do espetáculo.

Sugiro que estudem a segunda parte de A Criação de um Papel, de Stanislavski, onde o mestre russo estuda uma montagem da peça Otelo. Saliento que essa maneira de abordar a cena pode ser usada em qualquer linguagem, desde o naturalismo mais radical até o distanciamento brechtiano, ou uma cena clownesca (feitas as necessárias adaptações quanto à gramática da cena). Leiam também o texto de Grotowski sobre a ação dramática em Stanislaviski.

Vejam também uma pequena bibliografia básica sobre o trabalho do ator. Em relação à temática da ação que, volto a insistir, é fundamental e arquitetônica para o trabalho do ator, aconselho particularmente a leitura de A Preparação do Ator, A Construção da Personagem e A Criação de um Papel, de C. Stanislavski, A Canoa de Papel, de E. Barba, Método ou loucura, de R. Lewis e Ator e Método, de E. Kusnet.

São Paulo, 22 de julho de 1998.

Fonte: Grupo Tempo

EXCERTOS DA OFICINA "O ATOR EM JOGO"

Nota: O texto abaixo é uma transcrição de alguns trechos da Oficina "O Ator em Jogo". Foi revisado apenas no sentido de corrigir determinadas expressões, de maneira que se mantivesse o tom de exposição oral em que foi proferido.

Roberto Mallet


Transcrição do texto: Sandra Aurora Muñoz
Seleção dos textos: Flavio Crepaldi



Esta oficina diferencia-se da maioria das oficinas para atores que são hoje oferecidas. A própria idéia de oficina já subentende um período curto de duração. Esta tem vinte horas, o que já é um bom período para uma oficina. Ela surgiu a partir da constatação de duas coisas. Primeiro, os atores no Brasil (eu falo do Brasil, porque é a realidade que eu conheço), os atores no Brasil não pensam o seu trabalho, não pensam teatro, eles simplesmente fazem. Isso não acontece só com os atores; poucos pensam no Brasil, e uma das razões disso é que a gente não aprendeu a pensar. As pessoas acham que pensar é dado: o homem pensa! Não. Em potência, o homem pensa (falando aristotelicamente). Mas é preciso atualizar isso, ou seja, é preciso aprender a pensar, assim como a gente aprende a caminhar, como a gente aprende a comer; enfim, como a gente aprende qualquer outra coisa.

E eu via muita confusão, e vejo ainda muita confusão, especialmente, e aqui entra um segundo ponto, quanto à questão da ação dramática. Isso parece um absurdo, mas não é; é um absurdo de fato, mas teórico não é. O fato é que a maioria de nós, atores brasileiros, não sabe o que é uma ação. E eu digo isto porque tenho dado oficinas por esse Brasil afora e o comprovei empiricamente. As pessoas não sabem o que é ação, elas até sabem instintivamente, elas vão lá e agem muitas vezes, ou várias vezes, e muitas vezes não agem! Fingem que estão agindo.



(...)

O problema fundamental do ator é: como é que eu realizo uma ação crível? Colocando de outra maneira, a grande questão que a gente se defronta como ator é: porque é que fulano entra lá e executa uma seqüência de ações e eu acredito e beltrano realiza a mesma seqüência e eu não acredito?... A diferença não está na aparência, na exteriorioridade da ação. A gente já viu isso muitas vezes, a gente que trabalha com isso. O cara te diz: entra lá, pega um copo d'água e sai. Um entra, pega, sai e você diz "eu acredito"; o outro entra e você diz: "não acredito". Aparentemente ele fez a mesma coisa e um público desavisado talvez acredite nos dois, se ele não tem muito critério e especialmente se o beltrano for um bom enganador. E no teatro contemporâneo o que não falta são bons enganadores. Ele vai lá e engana e, aliás, o cara (o espectador desavisado) vai achar que este é o melhor. Porque ele sentiu, ele viu que o cara ia beber água porque ele estava com sede... E você, que tem um olho clínico, diz: não, é mentira. Por quê? Essa é a grande questão, porque se a gente resolve isso, em qualquer forma de teatro, desde o naturalismo mais exacerbado até o Kathakali, você resolve o problema do ator. Pelo menos como compreensão do que é aquilo lá. Não digo como realização porque a gente sabe que realizar é outro departamento. Mas para realizar você precisa compreender; nós estamos partindo desse princípio.

(...)

Eu só posso agir se eu estiver inteiro no que estou fazendo, é óbvio... O que vamos tentar entender nesses dias é o que levantamos há pouco: como realizar uma ação crível. Apesar de às vezes a gente ir para coisas muito filosóficas, muito gerais, elas estão todas ligadas a essa questão da ação do ator. Dessa ação que é fictícia mas que não é uma mentira. Eu costumo dizer que a gente confunde agir com significar; para mim essa é a questão fundamental, entendendo isso melhora bastante o nosso trabalho. Não é que significar não seja uma ação, também é uma ação, só que não é uma ação dramática, não é uma ação teatral. é impossível você fazer alguma coisa que não seja ação. é preciso que a gente distinga ação pura e simples de ação dramática.

No teatro realista isso é mais fácil de entender, até porque é o teatro com o qual temos mais intimidade. Nós pensamos em termos realistas; nem isso, pensamos em termos naturalistas, em geral, até porque nossa referência é cinema e televisão. O teatro que vemos é quase sempre muito ruim, temos uma ou outra coisa onde encontramos ação, mas no geral não tem ação dramática.

Um dos erros que encontramos muito nos atores hoje é a idéia de que você tem que ser outro, você tem que ser o Hamlet. O próprio Jouvet fala um pouco nesses termos. E o fato é que é impossível que você deixe de ser você mesmo, a não ser que você enlouqueça; ainda assim você vai continuar sendo você - louco. O que é possível é que eu seja eu mesmo numa condição diferente da minha condição cotidiana, sou eu numa outra condição. é o que Eugênio Barba chama de extra-cotidiano. Nós como atores temos que ter um princípio básico que é: não mentir. As pessoas acham que o ator mente; aliás hipócrita, que em grego quer dizer ator, virou sinônimo de alguém que finge, que está fingindo; mas o ator não mente, não finge. O que o ator faz é algo muito inusitado, ele vive uma ficção; como ele faz isso, é o que a gente vai tentar entender. Ele vive numa condição fictícia na cena. Claro que ele não se torna uma ficção, ele é alguém real e por isso ele pode viver uma condição fictícia. Só alguém real pode fazer isso. O Hamlet da peça não é um ser substancial. Stanislavski já apontava isso. Uma atriz acaba fazendo um esforço enorme para acreditar que é Ofélia, e ela não consegue, porque só se ela enlouquecer vai conseguir isso. "Aquela entidade vai baixar nela", isso é um erro que nunca vai dar teatro.

(...)

Há outro erro muito comum, e mais comum até do que esse de querer "ser a Ofélia"; é querer "sentir" o que a Ofélia sente... Querer "sentir"!... Muitos acham (e ensinam) que o ator trabalha com os sentimentos. Mas isto não é verdade. é impossível trabalhar diretamente com os sentimentos. E muitos acham que Stanislavski dizia isso, que o ator tem que "sentir".

Há uma passagem em "A Preparação do Ator" que demonstra isso com uma clareza meridiana. é logo no início do livro, quando o diretor fazendo um teste com os alunos recém-chegados ao curso. Ele propõe que eles peguem cenas de peças, montem-nas e apresentem-nas para ele. E eles o fazem. A personagem-narrador Kóstia pega uma cena de "Otelo", em que contracenam Otelo e Iago. Na crítica o diretor diz para o Kóstia: "Você ficou o tempo todo se mexendo, querendo sentir alguma coisa... Vamos fazer o seguinte... " E pede para Kóstia e mais dois alunos sentarem-se e lhes diz: "Você vai sentir alegria, você vai sentir ódio e você vai sentir tristeza." Como é que faz? Como é possível gerar um sentimento por si mesmo?

O Kóstia então comenta: "foi então que percebi todo o absurdo, nós percebemos como era absurdo querer sentir alguma coisa diretamente. O que, enquanto a gente estava se movendo em cena não parecia absurdo."

Isso é importante perceber. Quando a gente está aqui todos nós vemos o absurdo: ficar triste! Por quê? Nós sabemos que eu não posso decidir agora: vou ficar triste. Eu posso até fingir, mas não posso decidir ficar triste, eu posso decidir: eu vou fingir que estou triste. Mas quando a gente está se movimentando lá, dizendo o texto, a gente acha que é possível. O que Stanislavski está dizendo é isso: não só que é impossível mas que quando a gente está se movendo, quando a gente está no meio da situação cênica, parece que é possível. As emoções não podem ser manipuladas diretamente, é isso que Stanislavski está dizendo.

Agora vejamos outra situação: você sai de casa triste, aconteceu alguma coisa na sua vida, você brigou com o namorado, está triste e está saindo para o trabalho em cima da hora. Passa o ônibus, e você tem que pegá-lo, senão vai se atrasar e ficar mais triste ainda, e você dá um pique de cinqüenta metros para pegar o ônibus, e consegue pegar o ônibus. Aonde está a tristeza?... Desapareceu! é preciso que seu metabolismo volte ao normal para que volte a tristeza, ou seja: eu não posso manipular diretamente meus sentimentos mas eu posso manipular diretamente meu corpo e posso usar à meu bel-prazer meu intelecto, minha mente, minha razão. Isso eu posso. E através disso eu posso gerar sentimentos (que talvez não sejam exatamente os sentimentos da personagem, não importa). Mas eu posso atingir as minhas emoções via vontade, inteligência, e via corpo. Meyerhold dizia: "Eu vou do corpo para lá, Stanislavski vem de lá para cá, mas o resultado é o mesmo."

(...)

O fundamental para entender a questão da ação é que ela tem um sentido. Quantas vezes um ator entra em cena e você pergunta: o que você está fazendo? O que você vai fazer? Para onde é que você vai?

Ele não sabe. "Não sei... " Como não sabe?

Ele acha que o diretor tem que saber. Quantas vezes um ator entra em cena e diz ao diretor: E agora, o que eu faço? A resposta correta é: - "Não sei, eu não sou ator." Tudo bem, você pode sugerir... Enfim... Mas um ator em princípio não pergunta "o que é que eu faço?", ele faz. Aí o diretor vai dizer: "Não! Não é isso. Eu quero outra coisa, não está bom por isso e por aquilo, vai e repete."

Ontem a gente falava da crueldade da arte. A arte é cruel, porque é objetiva. Crueldade quer dizer objetividade, é objetiva, não tem "ah, mas hoje eu não tô bom..."

Claro que a gente não é tão radical na prática, mas poderia ser sem romper com nenhuma lógica, sem ser incoerente. Um ator age, a palavra quer dizer isso, aquele que age. Não aquele que pergunta, que duvida.

Se o ator não sabe o que é ação como é que ele vai resolver esse problema?



Pior ainda é quando o diretor também não sabe. E o que ele vai dizer quando você entra e pergunta: "O que eu faço?" é te dar um significado, e não uma ação. Ou ele vai dizer, por exemplo: "Nessa hora fulano está alegre."

Para o ator não resolve nada. O que é "estar alegre"? Nós vivemos um momento, especialmente sob esse aspecto, muito caótico. Uma das razões dessa ignorância do papel da ação (não a única) é a hegemonia do encenador. Porque para o encenador não interessa o trabalho do ator. E está certo, pois ele é um encenador, e não diretor de ator. Ele não está interessado no ator, ele está interessado em que você entre lá e faça o que ele precisa... Ele não sabe o que é ação enquanto ator, mas enquanto diretor; enquanto encenador ele sabe muito bem o que ele quer. Ele sabe que sentido quer dar àquela cena. Para ele existe um sentido. O problema é que o sentido do encenador não serve para o ator. Isso é muito importante entender; porque se o cara diz: "Você tem que estar alegre!", o que você tem que fazer é outra coisa, se você quiser ficar alegre você está ferrado. O que a gente faz em geral é tentar ficar alegre. Então, toda indicação, venha da direção, venha do texto, venha de você mesmo, venha de onde vier, você tem que transformar em ação, sempre. é a regra. Isso vale para qualquer forma de teatro. Claro que no realismo, até porque nós temos mais intimidade com ele, dá para a gente entender isso melhor. Mas mesmo no teatro mais abstrato você tem que agir, ser ator.

(...)

Todo grande artista tem que um grande ser observador. As pessoas acham que observar é observar a exterioridade, ver o "tique" . Quando na verdade a observação pega esse "tique" e vai atrás dele, vai ver por quê, ela vai na origem. Você está lá observando alguém... na verdade você não está olhando a exterioridade só, você está vendo o que está acontecendo por trás da aparência sensível.

(...)

Se você não tem esse olhar significa que você não é artista, porque você não está se movimentando numa dimensão simbólica. Você está se movimentando numa dimensão puramente sensível. Tudo é símbolo no universo. Sob esse ponto de vista que a gente está tratando, tudo é símbolo, e o artista é aquele que consegue ver isso. Ele vê uma árvore, mas ele não vê apenas uma árvore. Ele está vendo outras coisas que estão na árvore.

(...)

Walter Benjamin, em um texto denominado "O Narrador", diz que a narrativa sempre traz um conselho - a moral da história. Um conselho, diz ele, nada mais é que uma sugestão de continuidade para uma narrativa que está se fazendo - sua própria vida. é muito bonito isso. A questão é que hoje nós não percebemos a nossa vida como uma narrativa que está se fazendo. Toda vida é uma narrativa, quer a gente queira, quer a gente não queira. Mas as narrativas hoje não têm começo, meio e fim. A nossa vida se torna uma vida de instantes, o que eu faço hoje não tem nada a ver com o meu passado nem com o meu futuro, é um instante. Eu vivo de instantes, e na medida em que isso acontece assim, tudo é possível - é a pós-modernidade, onde tudo vale, porque não há nenhuma coerência na minha vida - então essa narrativa se dispersa, quase não é uma narrativa. Fragmenta-se. Com o advento da tecnologia isso piorou bastante. Nada contra a tecnologia em si, mas ela é um instrumento, é preciso que esse instrumento sirva para outra coisa, como ele está sendo usado não serve. A televisão, como disse o Cacá Carvalho, é a anti-narrativa; primeiro ela não comunica experiência nenhuma, não tem conselho nenhum ali, e segundo ela não tem coerência, porque você senta à sua frente e ela te fragmenta. Mesmo um filme da maior qualidade - você o está acompanhando, e entra um comercial falando de aerossol, barata; sai da barata, entra no cigarro, e assim por diante. Não tem coerência nenhuma naquilo ali. Vejam o efeito que isso tem sobre a mentalidade das pessoas. Um cara que fica exposto a isso quatro horas por dia, em um mês já não pensa, porque o pensamento subentende exatamente uma coerência, um discurso... A nossa civilização é uma civilização de dispersão.

(...)

Há um texto do Jacques Copeau que eu é um excelente ponto de partida para uma reflexão mais profunda sobre o trabalho do ator. Ele começa citando uma frase do Hamlet, que encontra-se na famosa cena dos atores, quando eles chegam e o Hamlet percebe que pode usar aqueles atores como ratoeira para pegar o rei, e pede para esses atores representarem alguma coisa, e eles representam uma cena de um texto romano.

Depois que eles representam e Hamlet fica sozinho ele diz:

Não é monstruoso que esse ator, em uma ficção, em um sonho de paixão, possa forçar sua alma a sofrer com o seu próprio pensamento a ponto de empalidecer-lhe a face; lágrimas em seus olhos, o aspecto conturbado, a voz entrecortada, e todo os seus gestos adaptando-se em formas à concepção de seu espírito? E tudo isso por nada! Por Hécuba? Quem é Hécuba para ele ou ele para Hécuba, para que a chore?

(Hamlet, ato II, cena II)



Aí comenta Copeau:

"O que é horrível, no ator, não é uma mentira, pois ele não mente. Não é um engodo, pois ele não engana. Não é uma hipocrisia, pois ele aplica sua monstruosa sinceridade em ser aquilo que ele não é, e não em exprimir o que ele não sente, mas em sentir o imaginário.

"O que perturba o filósofo Hamlet, da mesma forma que suas outras aparições dos infernos, é, em um ser humano, o desvio das faculdades naturais para um uso fantástico."

(Nota: O texto completo dessa citação encontra-se em Jacques Copeau - Aos atores)

Fonte: Grupo Tempo

Maurice Maeterlinck e a ressurreição do ator

Algo de Hamlet morreu no dia em que o vimos morrer no palco. O espectro de um ator roubou-lhe o trono e não podemos mais afastar o usurpador de nossos sonhos! Abram as portas, abram o livro, o príncipe anterior não volta mais. Sua sombra por vezes ainda passa pela soleira, mas ele não ousa avançar, não pode mais entrar e quase todas as vozes que o aclamavam dentro de nós estão mortas. [1]
Um dia, Maurice Maeterlinck era, nas palavras de Guy Michaud, o único que tinha algo a dizer ao teatro simbolista; mais tarde, estava morto antes mesmo de morrer aos 87 anos, tal o esquecimento em que se perdera com o passar dos anos, como nos conta Otto Maria Carpeaux.
A história de ascensão e declínio do dramaturgo belga por vezes parece tão perturbadora e inexplicável quanto a trajetória de vida e morte de alguns de seus personagens mais intrigantes. Uma das razões talvez seja, ao lado da impenetrabilidade inerente à estética simbolista, o fato de ele próprio ter negado, com o passar do tempo, algumas de suas teorias hoje consideradas revolucionárias e decisivas para a formação do teatro de vanguarda. Este texto tem a agradável pretensão de ressuscitar um pouco de Maeterlinck, da mesma forma como uma de suas teorias, a nosso ver, reanimou o ator, ao contrário do que se possa pensar quando se fala em “teatro de andróides”.
Nascido em 1862, começou sua carreira literária com a publicação de alguns contos e um volume de poemas decadentes, mas foi em 1889, com a peça La Princesse Maleine, que chamou a atenção do mundo literário, sobretudo a de Octave Mirbeau, crítico do Figaro, que encontrou na obra uma beleza mágica superior a Shakespeare – o que, para muitos e para o próprio autor, não passava de um enorme exagero. Exagero ou não, o essencial é verificarmos que, com o texto de La Princesse Maleine, o drama simbolista começa a se estabelecer.
Como teórico, Maeterlinck produziu três ensaios fundamentais para a concepção de seu teatro: Un Théâtre d´Androïdes, de 1890, Le Tragique quotidien, de 1894, e o Préface à edição de seu Théâtre Complet, publicada em 1901.
Le Tragique quotidien e o Préface à edição de seu Théâtre Complet são textos que tratam do drama propriamente dito. No primeiro, Maeterlinck examina os dramas clássicos e contesta a necessidade da ação, afirmando que nas obras de Ésquilo, por exemplo, a ação inexiste. Assim, parte em defesa de um “drame estatique”, em que a ação interior dos personagens teria muito mais força e sentido do que a encenação de grandes batalhas e paixões arrebatadoras.
Nesse drama estático, a ação interior seria então revelada por uma nova modalidade de diálogo: ao lado do diálogo convencional, feito de palavras, entraria em cena a fala imperceptível, subentendida, escondida nas entranhas dessa convenção. É da distinção entre esses dois diálogos que nasce a importância do silêncio no teatro de Maeterlinck. O silêncio é a voz da alma e, por isso, está mais próximo da Verdade.



No Préface, o autor faz uma análise da evolução de seu teatro, mostrando que, num primeiro momento, – de produção simbolista – a morte dominava a cena, sobretudo nas forças invisíveis mas aterradoras que surgiam para aniquilar seus personagens inocentes. Em sua segunda fase de produção, entretanto, admite ter afastado a sombra da morte, permitindo a entrada do amor e da felicidade.
Não eram apenas a verborragia clássica e a preocupação com a ação no teatro que Maeterlinck questionava: a presença dos atores era algo que o perturbava ainda mais. Assim sendo, no que diz respeito ao trabalho do ator, Un Théâtre d´Androïdes é sem dúvida controverso, aplaudido por alguns encenadores, mas visto com desconfiança por atores e atrizes.
Nesse ensaio, Maeterlinck propõe a supressão do ator, substituindo-o por marionetes, bonecos de cera ou até mesmo por efeitos de sombras. Para o dramaturgo, a alma dos atores interferiria na alma dos personagens, comprometendo o trabalho do poeta. Dessa forma, marionetes, seres sem alma nem personalidade, seriam perfeitos para a cena.
A cena é o lugar onde morrem as obras-primas, porque a representação de uma obra-prima apoiada em elementos acidentais e humanos é antinômica.
A idéia da superioridade das marionetes em relação ao ator não é, como sabemos uma invenção de Maeterlinck: é uma sombra que parece ter sempre perseguido o ator.



No Paradoxo sobre o Comediante, de 1769, Diderot aproxima ator e marionete, afirmando que “um grande comediante é outro títere maravilhoso cujo cordão o poeta segura, e ao qual indica a cada linha a verdadeira forma que deve assumir” (Diderot,1979,p.180). Assim, o que o filósofo francês parece buscar é uma certa marionetização da arte do ator, e não sua substituição por um boneco. Diderot vê no grande ator a ausência de paixão e assim a possibilidade mimética de qualquer sentimento. Para ele, o verdadeiro comediante é desprovido de sensibilidade, pois “é a extrema sensibilidade que faz os atores medíocres: é a sensibilidade medíocre que faz a multidão dos maus atores; e é a falta absoluta de sensibilidade que prepara os atores sublimes” (Diderot,1979,p.165).
O dramaturgo alemão Heinrich von Kleist, no célebre artigo Sobre o Teatro de Marionetes, de 1810, relata uma conversa fictícia com um bailarino que vê na dança das marionetes uma perfeição inatingível ao artista humano. Para Kleist, o foco está na ampla possibilidade de movimentos que a marionete pode executar. Por mais que a imite, o dançarino jamais será capaz de atingir sua plenitude de movimento e repetição.
Essa mágica do movimento seria resultado da falta de percepção, no boneco, de si próprio e de seu mundo. No outro extremo, estaria a figura de Deus, portador de uma consciência infinita.
A questão da consciência do ator também incomodava Edward Gordon Craig. Conhecido por seus cenários espetaculares, por suas idéias visionárias quanto à arte teatral, por sua parceria turbulenta com Stanislavski na montagem de Hamlet e também por sua teoria da Übermarionnette, a Supermarionete, Craig acreditava que o teatro e a arte do ator estavam condenados pela imitação grosseira da realidade preconizada pelo naturalismo e pelos exageros dos atores de formação melodramática. O ator não deveria se limitar à imitação da realidade, mas sim desenvolver um código capaz de sugeri-la. Deveria ser parte integrante do organismo do espetáculo, em constante interação com seus outros elementos, como luz e cenário.
Conhecedor dos andróides de Maeterlinck, Craig projetava na figura do boneco a instauração de um momento de transição na arte do ator, um momento de renascimento e salvação.
Criação artificial e assim verdadeiramente artística, a marionete é, para Gordon Craig, “a descendente dos antigos ídolos de pedra dos templos, é a imagem degenerada de um Deus” (Bablet, 1962, p.137). A Supermarionete seria, então, o ator do novo teatro, superior ao boneco, pois teria consciência de seus gestos e de seus movimentos. Rejeitando a imitação demasiado humana da vida, esse novo ator passaria a ser criador do personagem e não apenas sua personificação ou representação. Com o artifício da criação, seria, enfim, parte da obra artística.
As idéias e teorias de Craig acerca do trabalho do ator são, logo percebemos, representantes de um movimento que, ao promover a renovação da cena, contribuiu para a instauração do reino despótico-esclarecido do encenador. Este passaria a ter à sua disposição um ator marionetizado, cujos cordões poderia livremente manipular. A biomecânica de Meyerhold é um exemplo do novo trabalho que começa a se estabelecer na busca da flexibilização e mecanização do corpo do ator.



A imagem de superioridade e perfeição que nos sugere a Übermarionnette de Gordon Craig abre caminho para refletirmos um pouco sobre os manequins gigantes e desproporcionais do teórico e dramaturgo francês Antonin Artaud. Artaud escreveu sobre o uso dos manequins e os utilizou em vários espetáculos. Entretanto, diferente do ideal de plenitude e movimento de Craig, o autor francês parecia estar mais interessado no elemento fantástico e fabuloso e, conseqüentemente, no estabelecimento de uma outra dimensão.
Essa outra dimensão é também atingida quando Artaud põe em cena os manequins como duplos dos personagens. Aqui, então, uma nova esfera intervém e um mundo dissonante se ergue diante do espectador, obrigado a usar todos os sentidos para apreender essa nova realidade que eclode.
O encenador polonês Tadeuzs Kantor, para quem Gordon Craig é o grande mestre, vai igualmente colocar em cena bonecos prefigurando duplos dos personagens. Diferente de Artaud, entretanto, usará bonecos humanóides e não figuras gigantes. Para Kantor, os bonecos, associados aos atores, são duplos e sínteses da memória, que está morta. Assim, seu teatro é um teatro de travessia, uma longa viagem em que o passado marionetizado acompanha o ator.
A idéia de morte tão presente nos bonecos de Kantor se assemelha à ausência de alma que Maeterlinck quer nos personagens da cena. Os bonecos do encenador polonês são, assim, os que mais se aproximam dos andróides do dramaturgo belga, sobretudo pelo efeito que pretendem causar no espectador.

Maeterlinck quer em cena o homem desumanizado, o homem sem alma, o andróide por definição: andros, homem; eidos, forma. Em cena, esse ser vazio, mas dotado de uma inquietante semelhança física com o ser humano, não desorienta o curso do poema, que deve reinar absoluto. Para o dramaturgo, o grande defeito do ator é ter uma história, é possuir um passado e um futuro, é, enfim, ter o poema de sua vida interferindo no poema da vida do personagem.
Assim que ele [o homem] entra em um poema, o imenso poema de sua presença apaga tudo o que está ao seu redor.
Ao defender a supremacia poética, Maeterlinck está em afinada sintonia com a estética artística que representa e, mais ainda, sua voz é um eco das pesquisas poéticas de Stéphane Mallarmé, mentor intelectual do simbolismo, para quem a palavra deveria ser autônoma, independente da realidade externa, criadora e criatura de um mundo próprio.
Um poema que eu vejo recitado é sempre uma mentira; na vida comum, devo ver o homem que fala comigo porque a maioria de suas palavras não tem significado algum sem sua presença. Mas um poema, ao contrário, é um conjunto de palavras tão extraordinárias que a presença do poeta está amarrada para sempre; e ele não tem permissão para se livrar de seu cárcere voluntário, uma alma preciosa dentre tantas, para substituí-la pelas manifestações quase sempre insignificantes de uma outra alma porque, nesse momento, essas manifestações não são tão compreensíveis.
Para o poeta francês, essa autonomia residiria nas profundezas das palavras e o novo poema resultaria da pura relação entre elas. Como, porém, erigir o reinado da palavra livre? Por meio das sugestões, da linguagem indireta, da sintaxe irregular, do eterno movimento de significantes remetendo a outros significantes, jamais revelando significados verdadeiros ou definitivos.
Maeterlinck opera, então, uma transposição das idéias de Mallarmé à cena, vendo no ser de aspecto humano, mas destituído de alma, o instrumento ideal para a sugestão do mundo intangível de sua obra dramática.
Os simbolistas, em busca um drama do indizível, muitas vezes rejeitaram a cena, acreditando que o ato de leitura seria infinitamente superior à representação, pois a cena concretizada sempre ficaria aquém do poder de imaginação do leitor.
O poema era uma obra de arte e levava consigo essas admiráveis marcas oblíquas. Mas a representação veio contradizê-lo: ela faz com que os cisnes do lago voem; ela atira as pérolas ao abismo. Recoloca as coisas exatamente onde estavam antes da chegada do poeta.
Maeterlinck, no entanto, não exatamente repudia a mise-en-scène. Ao manifestar que “Lear, Hamlet, Otelo, Macbeth, Antônio e Cleópatra não podem ser representados e é perigoso vê-los na cena” (Maeterlinck, 1890, p.83), refere-se à encenação tradicional. Essa afirmação é antes um preâmbulo à defesa do andróide e à condenação do ator: tais obras não podem ser representadas por atores humanos.
Seria necessário talvez afastar completamente o ser vivo da cena.
Para o autor, a presença humana é um obstáculo para o poema desde os remotos tempos do teatro grego. Para ele, suas máscaras desempenhavam não apenas um papel prático, mas também simbólico, pois “serviam justamente para atenuar a presença do homem e enfatizar o símbolo” (Maeterlinck, 1890, p.86).
Para Maeterlinck, “a obra de arte é um símbolo e o símbolo jamais suporta a presença ativa do homem” (Maeterlinck, 1890, p.86). Dessa forma, para que a obra de arte se instaure, é necessário retirar da cena o ser humano com suas paixões, sofrimentos e anseios.
O ser humano seria substituído por uma sombra, um reflexo, uma projeção de formas simbólicas ou um ser que possuiria a aparência da vida sem ter vida? Não sei; mas a ausência do homem me parece indispensável.
A diferença fundamental, para o autor, entre o homem e o boneco é que o homem tem alma, o que se revela uma fatídica desvantagem para o ator. Sendo homem, é também uma marionete do destino e de suas forças estranhas e misteriosas, mas possui consciência da trajetória de vida e morte. Embora o ser humano nem sempre revele uma percepção de sua própria sorte, o ator conhece e reconhece o destino de seu personagem e eis que surge o embate entre ter ou não ter alma.
O poema se retira à medida que o homem avança [...] Se o homem entra em cena com todos os seus poderes e livre como se entrasse em uma floresta, se sua voz, seus gestos e sua atitude não são cobertos por um grande véu de convenções sintéticas, se percebemos por um só instante o ser humano que ele é, não há poema que não se retire diante dele.

Os personagens do drama simbolista de Maurice Maeterlinck são marionetizados: não têm consciência da vida, estão perdidos, não conhecem nem passado nem futuro. Vivem um (aparente) presente manipulado, em que não há história, não há nem começo nem fim e o agora não passa de um sonho incompreendido. É o triunfo de uma vida atemporal.
[...] teríamos em cena seres sem destino, cuja identidade não viria anular a identidade do herói.
Reminiscência do ídolo, a marionete se ergue, ameaçando o ator de tempos em tempos.
De Diderot, o dramaturgo belga parece ter absorvido a necessidade do esvaziamento das paixões. O homem e seus dramas pessoais são um grande fardo para o poema que se quer representar.
O Absoluto de Kleist assemelha-se ao Eterno de Maeterlinck: é a total falta de consciência da matéria, do tempo e do mundo que proporcionaria às marionetes seu poder de supremacia em relação ao ator.
Craig, como Maeterlinck, sonhou com um teatro sem os excessos imperdoáveis do naturalismo, contra uma arte simplesmente mimética e desprovida da aura e do artifício da criação artística.
O mundo dissonante dos imensos manequins de Artaud é uma ressonância da busca do dramaturgo belga por uma atmosfera de terror que “é a atmosfera própria do poema” (Maeterlinck, 1890, p.87).
É com Kantor, finalmente, que o Théâtre d´Androïdes parece finalmente encontrar a luz.
No espetáculo A classe morta, Kantor nos mostra velhos que entram em cena carregando bonecos, representações da infância desses mesmos personagens. Exaustos e próximos do fim, carregam o pesado fardo do tempo que passou, o peso temporal das perdas e da memória que se esvai.

Nesse momento, diferente de Maeterlinck, Kantor coloca em cena a questão que Maeterlinck problematiza: ao vermos os atores carregando seu passado na forma de bonecos, o conflito da alma humana sobe ao palco. Vistos lado a lado, ator e boneco, ser humano e ser inanimado, compreendemos o grande conflito vislumbrado pelo dramaturgo belga.
É possível, enfim, que a alma do poeta, não encontrando mais o lugar que lhe era destinado, agora ocupado por uma alma mais poderosa que a sua – já que todas as almas possuem exatamente as mesmas forças – é possível, então, que a alma do poeta ou do herói não se recuse a descer, por um momento, em um ser, cuja alma ciumenta não lhe impeça a entrada.
A figura do ator é paradoxal, assim como o próprio teatro. Maeterlinck, impedido pelas limitações próprias de seu tempo, apenas localiza o problema e o teoriza. Kantor, por sua vez, visualiza o problema e o leva à cena, numa clara atitude de vanguarda, ou seja: a tentativa de explicar, por meio da linguagem humana, a impossibilidade e a insuficiência da linguagem humana.
Assim, estando em cena o conflito do ser humano, bonecos e atores juntos nos levarão a uma paradoxal conclusão: a possibilidade de várias soluções ao embate não nos leva a uma solução que dê conta definitivamente do problema. O teatro será sempre uma arte paradoxal, contraditória. O ator sempre terá um elemento perturbador e a constante busca de uma solução para esse paradoxo é que manterá o teatro vivo e vibrante.



Maeterlinck, que sempre fechou tantas portas em suas peças, deixou uma porta entreaberta, sugerindo um novo caminho não apenas ao encenador, mas também oferecendo ao ator a possibilidade de se superar como criador e artista.
Ao insinuar a morte do ator, possibilitou sua ressurreição. Morto pelo títere, pela marionete, pela Supermarionete e pelos manequins gigantes, o ator teve que renascer e se reinventar e assim a própria arte do teatro se reinventou.
No lugar de “Shakespeare belga”, título tão comprometedor que ele próprio o recusou, pensemos em Maeterlinck como o “Ésquilo dos bonecos”, feliz definição de Jules Lemaitre que bem sintetiza seu papel: um autor que veio para propor uma renovação da arte teatral. Como conseqüência de sua incessante inquietação de autor simbolista, uma nova dimensão poética e um novo ator puderam subir à cena e mudar a história do teatro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Ana Maria. O ator e seus duplos: máscaras, bonecos, objetos. São Paulo: Editora SENAC, 2002.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

ASLAN, Odette. O ator no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1994.

BABLET, Denis. Edward Gordon Craig. Paris: L´Arche Editeur. 1962.

BALAKIAN, Anna. O Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1985.

CARPEAUX, Otto Maria. “No enterro de Maeterlinck”. In: Vinte e Cinco Anos de Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

DIDEROT, Denis. “Paradoxo sobre o Comediante”. In: Diderot: textos escolhidos; traduções e notas de Marilena Souza Chauí, J. Guinsburg. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

GUINSBURG, Jacó. “O titereiro da Graça: Kleist – Sobre o Teatro de Marionetes”. In: Da cena em cena. São Paulo: Perspectiva, 2001.

MAETERLINCK, Maurice. “Menu Propos: Un Théâtre d´Androïdes”. In: Introduction à une psychologie des songes (1886-1896) - textes réunis et commentés par Stefan Gross. Bruxelles: Éditions Labor, 1985.

MICHAUD, Guy. Méssage Poétique du Symbolisme. Paris: Libraire Nizet, 1947. 4 vol.

VIRMAUX, Alain. “Os manequins”. In: Artaud e o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2000.
[1] MAETERLINCK, Maurice. “Menu Propos: Un Théâtre d´Androïdes - 1890”. In: Introduction à une psychologie des songes (1886-1896) - textes réunis et commentés par Stefan Gross. Bruxelles: Éditions Labor, 1985. Todas as citações sem indicação se referem a este texto. Nossa tradução.

O OLHO DO ATOR

O OLHO DO ATOR
Roberto Mallet
Este texto corresponde à palestra que proferi no Festival Universitário de Teatro de Blumenau no dia 7 de julho de 2000. A sua transcrição foi feita por Fernando Weffort.

O que é preciso ver para ser ator, para ser um artista? Essa é uma discussão que está ligada à arte contemporânea de um modo geral e não só ao trabalho do ator especificamente. Então, gostaria de começar lembrando a origem da palavra Teatro, que muitos de vocês aqui devem conhecer. Teatro quer dizer lugar onde se vai para ver - Theátron. Esse ver do teatro, pelo menos da palavra grega theaomai, provém da raiz thea, um verbo que se traduziria mais
corretamente para o português por contemplação. A contemplação é uma visão intuitiva das coisas, uma visão intelectual, da inteligência. O teatro não seria,
portanto, um lugar onde eu vou para encher os olhos - como muitas vezes acaba acontecendo no teatro e na arte contemporânea, uma arte que se dirige mais ao
olhar sensível. A arte, pelo menos se a gente for pegar a história da arte, sempre foi pensada, exceto em algumas correntes nos últimos dois séculos, como se
dirigindo fundamentalmente à nossa inteligência através dos sentidos.
Eu venho dizendo há alguns anos que a formação do artista é também a construção de um olhar, de uma maneira de olhar, um olhar que pretenda compreender. E a nossa questão aqui é: eu como ator preciso desenvolver que tipo de olhar? Me parece que isto é algo que não fica claro para nós atores.
Conta-se de um pintor que estava pintando um quadro e procurava de uma determinada cor que estava próxima do lilás, e ele não encontrava esta cor. Era
um pintor que costumava ir muito aos museus, observava muito as obras de arte como inspiração e treinamento do olhar. E esse pintor, ainda atrás desse lilás, chama um coche para ir a um museu exatamente para ver se ele encontrava a porra do lilás que procurava. Quando chega o coche - era um dia iluminado, com muito sol -, era um coche todo amarelo, e quando ele viu o coche (vocês devem
saber que existem cores complementares que irradiam-se em torno dos objetos - se você tem um objeto muito amarelo em torno dele você tem uma aura roxa, lilás, que é complementar do amarelo.), quando ele viu o coche ele disse: “não preciso
mais ir ao museu”; voltou e preencheu a zona em torno desse ponto onde ele queria a cor com amarelo, e criou essa cor complementar. Ou seja, um pintor é
alguém que tem um olhar afiado para cores, manchas, volumes, linhas... É alguém que aprende a olhar. Quem não consegue ver bem, não consegue desenhar bem, não consegue pintar bem, é óbvio. Claro que ele já tem esse talento natural, mas é algo que precisa ser desenvolvido. Um músico é alguém que ouve bem, alguém que consegue ouvir coisas que nós não ouvimos. Não é? A gente conhece músicos e fica às vezes assustado: “como é que esse cara está ouvindo tanta coisa? Eu não estou ouvindo nada disso.” Mas as coisas estão lá, ele é capaz de ouvir, ou seja, ele tem um ouvido treinado.
E nós atores temos que ter um olho treinado para o quê? Qual é a nossa matéria de trabalho? O que é que corresponde às linhas, volumes, cores no trabalho do ator? E isso liga-se com a questão do teatro grego: eu vou ao teatro para ver o quê? Para compreender o quê?
Parece-me que na formação do ator se descuida muito esse aspecto – a gente precisa ver teatro para aprender a fazer teatro. Nós estamos começando o
Festival aqui, nós vamos passar ainda por vários debates. E o que eu tenho visto na maioria dos debates em outros festivais por aí, neste aqui também, em outras edições, é que o olhar das pessoas sobre o espetáculo é muito vago, é muito pouco definido. As pessoas não sabem para onde devem olhar. Isto resulta numa avaliação vaga, numa avaliação indefinida, baseada muito mais no gosto do que
em dados objetivos; “gostei”, “não gostei”, “não me agrada”, “você poderia ser mais incisivo”, quer dizer, coisas que não se baseiam na obra propriamente dita
mas em reações subjetivas.
Eu venho nos últimos anos discutindo muito um tema que me parece um pouco fora do nosso imaginário, do nosso campo de discussão, que é a nossa
dificuldade em ser objetivos, em ver. Claro, nós estamos vivendo um período em que, há pelo menos 300 anos, a nossa civilização entrou numa relativização de todos as coisas. Começa com Descartes, na verdade começa com Guilherme de
Ockam em 1350, passa por Descartes e chega em seu ápice com Kant, que chega à conclusão de que eu só posso saber o que eu percebo do mundo, mas
não posso saber nada sobre o mundo propriamente dito; que eu não posso afirmar nada sobre a realidade externa, sempre ela é subjetiva. Nós vivemos ainda sobre a égide desse pensamento. A Academia, a Universidade inteira - não esta ou aquela, mas toda Universidade - vive sob a égide desse pensamento. Uma relativização de todas as coisas. A filosofia contemporânea inteira, a sociologia, a lingüística, etc., etc. De maneira que muitas vezes a gente não consegue ter um olhar objetivo sobre as coisas, e vivemos em nossa imaginação. O nosso
imaginário se torna o filtro através do qual a gente vê as coisas.
Eu dizia que nos debates, muitas vezes (quando a gente está de fora é mais fácil ver do que quando a gente está de dentro), os diretores e atores quando
falam sobre o seu espetáculo, eles falam sobre um espetáculo que eles imaginaram e não sobre o espetáculo que está lá. Não sei se vocês já perceberam isso, é muito comum. Eu imaginei determinadas coisas, eu tenho determinadas
idéias sobre o espetáculo e eu não consigo confrontar essas idéias, essas imagens, com o objeto que é o próprio espetáculo. Aí vem todo aquele discurso:
“tudo é relativo”; “isso é subjetivo”... Então eu gostaria que vocês refletissem – a nossa oficina busca um pouco isto - sobre a distância que há muitas vezes entre o que eu penso sobre as coisas ou o que eu imagino sobre as coisas e a maneira como elas de fato se apresentam a mim.
Mas voltando ao trabalho do ator, que matéria é essa que meu olho deve ser treinado para ver? Obviamente são as ações. A matéria do teatro, a matéria do
ator são as ações. Fundamentalmente o ator é aquele que age - por definição. A melhor maneira que eu tenho encontrado nos últimos anos de explicar o que é
uma ação, é baseada na teoria das quatro causas do Aristóteles.
Para Aristóteles, todo objeto, todo ente, tudo aquilo que existe no universo tem quatro causas. A causa eficiente, a causa formal, a causa material e a causa
final. Se a gente pensar isso num objeto qualquer, um objeto artificial – uma cadeira por exemplo - fica bastante claro para nós. Para que uma cadeira exista o que é preciso? Bom, primeiro precisa alguém que a faça; uma cadeira não aparece do nada. É o que Aristóteles chamava de causa eficiente. Segundo, ela
precisa ter uma forma. O que é forma? É a estrutura interna dela, é a idéia dela (idéia no sentido Aristotélico - eidos). Terceiro, ela precisa de uma matéria da qual
ela seja feita; eu não posso fazer uma cadeira de nada. Então eu vou ter sempre uma matéria, que é a causa material. E quarto, ela tem uma finalidade; aquilo é construído por alguma razão.
Aristóteles aplica isso ao universo inteiro, tanto ao universo artificial, quanto ao universo natural. Nós não vamos entrar aqui na questão do universo natural
porque tem muita discussão nisso e nós vamos perder o rumo da nossa conversa.
Então nós vamos nos limitar aos objetos artificiais. Nos objetos artificiais isso aí é de uma obviedade indiscutível. Numa obra de arte, por exemplo (numa cadeira), você sempre vai ter esses quatro elementos. No nosso comportamento isso aí é indiscutível também; a gente não faz nada, absolutamente nada, sem razão alguma. A gente pode até pensar que está fazendo sem razão, aí entra toda a teoria freudiana, da psicanálise e de todas psicologias que buscam encontrar as motivações ocultas em atos aparentemente sem sentido... e isso está por trás
dessa teoria, ela parte desse princípio: não existe nada que aconteça por acaso.
Então se você sonhou com alguma coisa deve ter alguma razão para isso, e ela vai atrás dessas razões.
Agora, se a gente se voltar para o ator - Stanislavski falava disso exaustivamente, não tenho nada de novo para dizer para vocês, talvez eu só esteja tentando pegar isso numa linguagem, a partir de alguns elementos mais acessíveis a nós - toda ação tem o que ele chamava de objetivo, e que o Aristóteles chamava de causa final, e é ela que move a ação. Dizia o Aristóteles que a causa final é que move, mas ela não move da mesma maneira que a causa
eficiente - que é aquele que vai lá e faz, se movimenta e age para fazer a cadeira - ela move, de uma certa forma, como atração. Eu quero chegar naquele objetivo e portanto eu faço alguma coisa. É esse o sentido de movimento para a causa final, o objetivo.
Agora, no trabalho do ator a gente percebe que existe duas ações pelo menos, talvez três. Vamos pegar um espetáculo realista em que é mais fácil da
gente pensar isso, mas isso se aplica, guardadas as transposições necessárias, para o teatro não-realista, para a dança, enfim, para qualquer uma das artes que
chamamos hoje de performáticas. No teatro realista, você tem a ação da personagem - quando Stanislavski falava em objetivo ele estava se referindo a essa ação, ao objetivo da personagem. Digamos, quando Hamlet convence os atores a fazer aquele espetáculo com o texto que ele escreveu, qual era a finalidade dele? A finalidade dele era testar uma teoria... testar o que o fantasma falou para ele; ver se realmente o rei matou o pai dele ou não. Ele tem uma finalidade objetiva ali. Isso não pode ser esquecido pelo ator.
Bom, mas não é só essa ação que a gente tem no ator. Aliás essa ação não está no ator, está no imaginário do ator, às vezes muito mais no imaginário do público do que no imaginário do ator. Há uma confusão freqüente sobre isso entre os nossos atores: achar que há uma identificação de objetivo, ou mesmo de ser, entre o ator e a personagem. Isso é uma grande bobagem; você não pode ser a personagem, por definição - você é você. Segundo, você não pode sentir as coisas que a personagem sente. Muitos atores se perdem nisso, tentando sentir o que a personagem sente, achando que memória afetiva em Stanislavski era isso - não era! É bem verdade que nos livros que a gente tem traduzidos do Stanislavsky, a linguagem é um pouco confusa e pode nos levar a pensar isto.
Mas em outros momentos isso é objetivamente dito por ele: o ator não deve se preocupar em sentir, o ator tem que se preocupar em agir. O sentimento é
decorrência da ação. E mais, o ator não sente as coisas que a personagem sente.
Imagine se o ator que faz Otelo sentisse o que Otelo sente. Seria a produção mais cara do mundo; precisaria de uma atriz por dia, mais o enterro, etc., etc., ia sair muito cara essa produção. O que o ator sente é outra coisa - e não importa muito o que ele sente, importa o que ele faz.
Essa segunda ação do ator é uma ação que ele realiza sobre o seu próprio organismo psico-físico e sobre o espaço que o rodeia, sobre os outros atores, sobre o público... enfim, é a ação do criador propriamente dita. Aqui a gente colocaria que o ator é causa eficiente; a matéria é o seu próprio organismo psico-físico;
a forma, a ação da personagem; e a finalidade é a própria obra.
Está dando para acompanhar? Porque aqui é que está o buraco, me parece. A finalidade é a própria obra. É o que Stanislavski chamava de superobjetivo. E é a própria obra enquanto sentido também - a obra tem um sentido - e não a própria obra em geral - “fazer teatro”. Me parece que este é um dos nossos equívocos fundamentais. Claro que na oficina a gente vai ter a oportunidade de fazer pequenos experimentos práticos que vão esclarecer isso um pouco melhor do que essa breve conversa que a gente está tendo. Mas eu vou tentar falar um pouco sobre isto, porque me parece que se a gente conseguir ver isso com mais clareza, nosso trabalho ganharia muito.
Uma vez que a ação da personagem é a causa formal do trabalho do ator, ela tem que estar muito presente nesse trabalho. O Stanislavski dizia uma coisa genial em relação a isto: o ator não pode pensar nunca em generalidades. E é a coisa que a gente mais faz.
Todos vocês devem ter tido essa experiência: você entra em cena, começa a desenvolver alguma coisa, o diretor pára e diz: mas você está fazendo isso por
quê? Você está querendo o quê? “- Não, é que... é...” - a gente não sabe, é sempre muito geral. “- Não, é que... ela está querendo ser feliz.” Mas o que é isso, “querer ser feliz”? “Ela quer se vingar...” Mas o que é isso, “querer se vingar”? Isso é muito geral. É o que eu dizia antes, a gente vive num mundo muito abstrato. Porque o mundo da imaginação é um mundo abstrato, é um mundo esquemático. Quando você lembra de alguém, por exemplo - mesmo pessoas que você conhece intimamente, mesmo sua mãe - a imagem que você tem de sua mãe é um esquema, onde está faltando um monte de coisa, é abstrata. Como é
que eu faço para concretizar isso, como ator? Como é que eu transformo isso em
ação? Esta é a pergunta.
A imaginação do ator tem que ser uma imaginação que se encarna. Ou seja, é uma imaginação que não é puramente mental. A gente muitas vezes acha
que a imaginação é uma espécie de filme que está lá na nossa cabeça. A gente reduz a imaginação à memória visual. Ok, nós temos mesmo um preponderância do olhar na nossa percepção, mas quando eu transformo isso em ação, isso tem
que se encarnar em meu corpo, ou seja, você tem que trabalhar com os seus cinco sentidos.
Jacques Copeau tem uma definição muito legal sobre o trabalho do ator, onde ele diz que o ator não mente, não é uma mentira o trabalho do ator, mas é uma espécie de ação (eu prefiro a palavra ação, ele fala em sentir o imaginário), uma ação diziam assim: não existe o teatro, existem teatros! Como se o plural
resolvesse o problema. Mas quando você fala teatro você está falando do quê? E se é plural, é plural do quê? Isso é uma negação, de novo, tipicamente do mundo contemporâneo, uma negação das essências. Uma idéia de que as essências não existem. De uma certa forma, de fato elas não existem, porque elas só existem na coisa, não existe uma essência separada, uma essência pura, isso não existe mesmo. Mas a definição de teatro (talvez a mais apropriada, ou a que eu mais uso) é: alguém que age num plano ficcional diante de alguém que vê. Se você tiver isso você já tem teatro.
Nesse caso, por exemplo, que eu citava, um exercício onde a pessoa não sabe exatamente o que ela está fazendo, ela não tem claro um objetivo interno à cena. O que é que está acontecendo de fato? Eu concluí ao longo desses meus anos de trabalho que é a causa final que está errada. Não é que ela não tenha um
objetivo, é que ela está com um objetivo equivocado. O objetivo dela é, por exemplo, resolver a cena. Ela entra para isso. Dá para entender onde é que está esse buraco?! Isso é fundamental! Digamos que você tem essa cena de que a gente falava, do Hamlet. Ele quer convencer os atores a fazerem um determinado
espetáculo porque ele está interessado em revelar ou, pelo menos, em testar o rei.
Esse objetivo é muitas vezes esquecido pelo ator e ele entra na cena para fazer teatro - é isso que está na cabeça dele, a gente vê isso nos espetáculos com
muita freqüência, isso aí é o ponto a partir do qual o espetáculo começa a se degradar, começa a esvaziar. As pessoas já não repetem, já não refazem os espetáculos com os objetivos reais do espetáculo, mas com o objetivo de fazer de novo, de repetir; elas mudam o objetivo insensivelmente, e não percebem que estão mudando o objetivo. Agora mesmo com o espetáculo que eu estava dirigindo lá em São Paulo aconteceu isso no meio da temporada. Eles fizeram um espetáculo péssimo. E você vai ver por que é que isso acontece - é porque não há mais o impulso inicial que movia o ator; ele esqueceu daquele impulso e começa a gerar uma outra preocupação que é repetir e fazer o espetáculo bem feito. Isso quando havia uma ação originalmente.
Muitos atores têm como objetivo fundamental ser admirados. A pessoa está em cena não é para fazer teatro, não é para te dizer alguma coisa, mas é para que você diga alguma coisa para ela. Isso é maravilhoso. Nós precisamos identificar isso, porque isso está na cena.
Notem: a causa final está na cena. É ela que move o agente. Dito de outra maneira: a causa final determina a obra. E se ela determina a obra, eu posso identificá-la na obra. Há pouco tempo eu assisti um espetáculo, em uma mostra, que era uma série de histórias... Era um espetáculo composto de narrativas... E esse espetáculo era costurado por pequenas canções. Eram dois atores, um que tocava violão e cantava e o outro que fazia mais a narrativa e que também cantava. E acontecia uma coisa muito ruim no espetáculo: a narrativa era maravilhosa, as músicas de ligação eram muito fracas. Quando entravam essas
músicas o espetáculo caia lá em baixo. Aí, quando retomava a narrativa, o espetáculo vinha subindo e voltava para o ponto. Vendo o espetáculo imediatamente compreendi: esse ator, o violonista, é o compositor das músicas.
Só pode ser isso. É a única razão para que essas músicas estejam costurando o espetáculo. E tiro e queda! Ele era o compositor das músicas. Dá para perceber?
Quer dizer, o cara simplesmente ficou cego, ele deixou de ver a obra que estava construindo em função do desejo pessoal de mostrar suas músicas. E ele simplesmente fica cego mesmo. Porque se ele soubesse disso, tudo bem, estão me entendendo? O que nós estamos discutindo aqui é isso: o problema é que você cega, deixa de ver. O objetivo é tão forte que cobre, te cega. Porque se o cara lá entrasse em cena sabendo que ele quer ser admirado, ok, porque ele
conseguiria transpor isso e poderia até vir a conseguir o seu intento, mas o problema é que ele não sabe disso e a direção não percebe isso também. Se o
objetivo dele é “fazer teatro”, é “mudar o mundo”, isso é uma coisa muito vaga, muito ampla. Os objetivos precisam ser concretos.
E o que é essa ação dramática, então? Essa é a minha discussão há anos, quem me conhece sabe que esse é o tema corrente, obsessivo da minha discussão. Porque eu acho que a maioria dos nossos atores não compreende mais o que é a ação dramática.
Por exemplo, hoje em dia temos muitos espetáculos onde o objetivo é mostrar as habilidades adquiridas pelo elenco. Algumas pessoas que vêem na linha do teatro antropológico caem nisso. Não estou nem dizendo que o teatro antropológico cai nisso. Mas o cara adquiriu uma habilidade, passou meses, anos
trabalhando para adquirir a porra daquela habilidade e ele não se contenta que aquilo seja apenas um elemento estrutural no seu trabalho, ele precisa mostrar para as pessoas a habilidade que ele tem. E aí você perdeu a dimensão da ação, e portanto a dimensão do sentido, e foi para a demonstração de habilidade, que é um fato circense e não teatral. Eu vou ao circo para ver habilidades desenvolvidas.
Uma vez eu vi no programa do Jô Soares um treinador de orangotangos. Depois de demonstrar várias habilidades do orangotango, havia um número em que o orangotango comia, numa mesinha. O Jô perguntou-lhe: “Quanto tempo para fazer o orangotango comer no prato?” E o treinador respondeu: “Um ano só para
fazê-lo pegar na colher.” E e é isto, você vai ao circo e aplaude porque o cara perdeu um ano da vida dele para fazer um orangotango pegar numa colher. É
esse o sentido do circo. O Barba tem uma definição legal sobre isso - eu tenho as minhas diferenças com o Barba (e ele tá cagando pra isso, né?), mas o trabalho
teórico dele tem um valor imenso... Eu costumo dizer que o Barba faz teatro comparado e não antropologia teatral - ele comparou várias formas de teatro e
tirou os princípios que subjazem a todas elas, e é um trabalho brilhante, nenhum de vocês pode desconhecer a obra desse cara, especialmente o livro A Canoa de Papel, que para mim é o livro mais generoso do Eugênio Barba, e também o de maior utilidade para os atores. Mas, voltando, ele diz uma coisa que é muito legal nesse sentido. Ele diz: eu vou ao circo para ver algo que é incrível. Minha relação
com o circo é essa, eu vejo o cara fazendo e percebo que eu não conseguiria fazer aquilo. Ele está demonstrando uma habilidade que eu não tenho. E eu vou ao teatro para ver algo que é crível. É o contrário. No teatro eu acredito (ficcionalmente, é claro) no que está acontecendo. Então, toda demonstração de
habilidade no teatro me distancia, no sentido de eu observar aquilo como circo, ou seja, como algo que não tem sentido senão a demonstração da habilidade.
Portanto toda ação, se tem uma causa final, tem um sentido. Teve um tempo que eu costumava dizer que num espetáculo ou num determinado momento não tem ação. Mas é preciso ir mais a fundo nisso. Na verdade é impossível que não tenham ações lá. De acordo com Aristóteles, tudo está agindo o tempo todo. O que ocorre é que a ação não é dramática, ou seja, a ação não é teatral. O objetivo do que o cara está fazendo não corresponde, não se integra no contexto do teatro. Por exemplo, uma ação cujo objetivo seja mostrar as habilidades do sujeito saiu do âmbito teatral. O cara que está te mostrando os belos pensamentos que ele teve, as coisas muito interessantes que ele tem a dizer, saiu do âmbito teatral.
Voltando à questão do olhar do ator - do olho do ator: para onde o nosso olhar tem que se dirigir no dia a dia? O que é que nós temos que observar? As ações e, portanto, os sentidos das coisas. Não de um ponto de vista crítico – não tenho que observar os homens como se eu fosse um técnico de laboratório, um
crítico... aliás, você vai se tornar um chato se você for por esse caminho, que está sempre analisando, detectando o que é as pessoas estão querendo. Mas com amor. Ou seja, eu tenho que me colocar no lugar das pessoas e tentar perceber oque elas querem, por que é isso que está determinando a ação delas. Não é isso?
Eu sei quem alguém é não pelo seu caráter, mas pelas suas ações. É o que o velho Aristóteles dizia. no teatro o caráter não é o mais importante, o caráter da
personagem, mas a trama dos fatos, as ações. Eu sei quem alguém é pelas coisas que ele faz. Não adianta a pessoa me dizer: olha, eu sou muito generoso...
A gente não acredita. A gente espera até ver essa pessoa numa situação tal que nos revele se realmente ela é generosa ou não. O que a gente fala sobre nós
mesmos (e sobre os outros) tem pouca importância se comparado ao que a gente faz.
Bom, eu queria concluir a minha fala dizendo que nos últimos anos eu comecei a colocar como critério de avalição de um espetáculo - como jurado já tive meus problemas por causa disto - se o espetáculo é generoso. Porque uma obra de arte é feita para o público e um espetáculo que é feito para ser admirado,
louvado, é um espetáculo que está fechado em si mesmo. Eu gosto de dizer que o ator é um presente que se dá. Então esse ato de generosidade, de doação, ele está por trás dessa ação do ator. Se você conseguisse ter isso mais claro você já eliminaria metade das ações equivocadas que você pode realizar em cena.
Metade. A outra metade você tem que alcançar por outro caminho.
O Jacques Copeau tem uma frase definitiva sobre essa questão: “para o ator doar-se é tudo; mas para doar-se é preciso antes possuir-se”. Então esse
olhar que pretende conhecer o outro, deve também ser um olhar objetivo e - aí sim muito cruel - em relação a nós mesmos. A gente também tem que observar nas
nossas ações - o que de fato nos move. Porque nós somos muitas vezes grandes mentirosos em relação a nós mesmos. A gente doura a pílula. A gente está
querendo uma coisa, mas pra não confessá-lo dizemos que estamos querendo outra. E isto para nós mesmos! Nós conseguimos enganar a nós mesmos, e isso é um verdadeiro prodígio.
Esse questionamento das ações no mundo, inclusive das minhas, ou talvez principalmente das minhas, é que pode me dar um conhecimento mais profundo
da matéria (ou da forma, depende do ponto de vista) do ator, que é a ação.

Roberto Mallet é diretor, ator e professor. Em 1992 fundou o Grupo Tempo onde dirigiu os
espetáculos Judite (1993), Abismo de Rosas (1994), Teresinha (1998), Canto de Outono (1999) e
Drakul - paixão e morte (2002). Em 2001 voltou a trabalhar como ator, no monólogo Lições de
Abismo, direção de Mario Santana. Cursou Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, onde conheceu Maria Helena Lopes (Grupo Tear), com quem estudou de 1980 a 1986,
tendo trabalhado como escriba no espetáculo Os Reis Vagabundos (1982) e como ator em Crônica
da Cidade Pequena (1984). Desde 1987 vem se dedicando também ao ensino, particularmente
nas áreas de interpretação e teoria teatral. Foi professor na Universidade Regional de Blumenau
(SC), de 1989 a 1992, e no Curso Livre de Formação de Atores do TUCA, de 1992 a 1994.
Ministra freqüentemente workshops e oficinas. Atualmente é professor de interpretação noDepartamento de Artes Cênicas da Universidade de Campinas – UNICAMP.

Verdade paradoxal do comediante em Diderot

Um dos aspectos mais relevantes das obras de Diderot (1713-1784) é a questão que ele propõe sobre as atividades do teatro francês e do ator de teatro. Para o primeiro, Diderot irá investir criticamente contra a estética que se apresenta, isto é, o teatro francês é inócuo, não suscita emoções, é convencional e incapaz de criar uma ilusão naquele que ao assiste e, por isso, peca pela artificialidade que se apresenta ao público. Ainda, regido por regras arbitrárias, o teatro francês é racional, discursivo e se expressa apenas para poucos espectadores, "escrito em um estilo alambicado, obscuro, tortuoso, empolado, está cheia de idéias comuns" (Diderot, René. Paradoxo sobre o comediante in A Filosofia de Diderot, Editora Cultrix, p. 165)

Embora se encontrem opiniões sobre os textos de Diderot que convergem para sentidos opostos, umas dizendo que a sua obra é entrecortada por inclinações opostas, outras dizendo que as inclinações se alteram no decorrer dos escritos, pois os objetos mudam e por isso as idéias, que por si só são pontos de reflexão e plenas de atividades, mudam de acordo com a complexidade do objeto, há uma insistência e constância nas suas concepções teóricas. Para Diderot, em toda a sua trajetória, a função do teatro continua a mesma, isto é, a arte cênica é a imitação da própria vida; a realidade com qual a platéia deve se fundir, um a outro, a ponto de tomar para si a ficção pela realidade. O teatro ultrapassa a barreira do preconceito e do mero entretenimento, Diderot acredita que este deve transtornar o espectador ao ponto de abalar e causar-lhe um efeito duradouro, uma impressão que não se dilua após o espetáculo. O filósofo e dramaturgo participa um teatro como meio de comunicação, inspirado e desempenhado a favor de uma moral social, que possa agir sobre o público a partir de uma estética bem elaborada que suscite emoções de certo modo permanente no espectador, fazendo vir à tona a finalidade comum das artes, que é: "fazer com que o homem ame a virtude e odeie o vício" (Matos, Franklin de, O Filósofo e o Comediante, Ed UFMG, p.29).

Desse modo, nesta trajetória, surge uma dramaturgia na obra de Diderot que promove a observação da natureza, não da natureza por ela mesma, mas uma observação refletida sobre modelos ideais, que ao reproduzi-los autor e ator se apliquem com ênfase na movimentação estilizada ao que é natural e ao abandono da proporção e da simetria. Pois, se por um lado o discurso elaborado é agradável aos ouvidos, por outro ordena as coisas e inibe as paixões. Assim, "compete à natureza dar as qualidades da pessoa, a figura, a voz, o julgamento, a sutileza. Compete ao estudo dos grandes modelos, ao conhecimento do coração humano, à prática do mundo, ao trabalho assíduo, à experiência e ao hábito do teatro, aperfeiçoar o dom da natureza. " (Diderot, opus cit, p. 165). Embora, como comenta o professor Franklin de Matos, este movimento da estética de Diderot nasça de um conceito de mimesis que se baseia na sensibilidade, espontaneidade, entusiasmo e se inclina, devido à experiência, quer como dramaturgo, quer como critico de arte; para a frieza, tranqüilidade e penetração, Diderot não abandona a sua crítica principal ao teatro clássico francês e a proposta de uma reforma da cena teatral.

Para o segundo, retomando: o ator, Diderot afirma: "o comediante que representar com deliberação, com estudo da natureza, com imitação constante segundo algum modelo ideal, com imaginação, com memória, será um e o mesmo em todas as representações, sempre igualmente perfeito, tudo foi medido, combinado, apreendido, ordenado em sua cabeça (...)Ele não será desigual: é um espelho sempre disposto a mostrar objeto e a mostrá-los com a mesma precisão, a mesma força e a mesma verdade" (Diderot, opus cit, p. 167-168). Em suma, o autor pode ser em si mesmo verdadeiro sendo outro. À medida que o ator se apresenta frio, tranqüilo e compenetrado, mais ele terá o controle e domínios das suas emoções e assim, formando o paradoxo, ele poderá representar (imitar) de modo verdadeiro as emoções da personagem diante do público.

O teatro é visto, neste momento das reflexões de Diderot, como um teatro das inflexões, que privilegia os componentes pré-verbais, isto é, a desarticulação de idéias, os monossílabos, os ruídos, os gritos, o que coloca a palavra em segundo plano com a ascensão das emoções. Mas isto não tira das mãos do poeta o valor da sua composição? Não, apesar do paradoxo que se forma mais uma vez, desde que o teatro seja visto como a voz do discurso do poeta, este movimento em verdade aproxima o ator da energia das palavras e das cenas que são postas aos seus cuidados, o verdadeiro palco, afirma Diderot, "é a conformidade das ações, dos discursos, da figura, da voz, do movimento, do gesto, com um modelo ideal imaginado pelo poeta, e muitas vezes exagerado pelo comediante. Eis o maravilhoso" (Diderot, opus cit, p. 175). Ainda que nenhuma língua seja capaz de dar conta da delicadeza e diversidade de uma emoção, as palavras do poeta, na perspectiva de Diderot, emergem da motricidade corporal com que o ator as representa no palco, a emoção brota da realidade observada e escrita pelo poeta, que pode agora indicar a energia passional que o seu texto exprime. O paradoxo de Diderot envolve duas "verdades" que aparentemente se afastam, mas que, de fato, se harmonizam a favor da perfeição. A perfeição das obras se medem pelo seu poder de iludir (Matos, Franklin de, opus cit, p.38), isto é, a cena de teatro perfeita é aquela que o público toma como verdadeira, sendo em si uma ilusão.

Porfírio Amarilla

Filósofo pela USP/FFLCH

AOS ATORES

Aos atores
Jacques Copeau


"Tenho uma elevada idéia do talento de um grande ator, escreveu Diderot com melancolia, esse homem é raro..."

Tanto mais raro, com efeito - e tanto maior quando surge - pelo fato de o ofício que ele exerce ameaçar tanto a pessoa humana, sua integridade, sua elevação.

Shakespeare disse (Hamlet, ato II, cena II) que a natureza do ator vai contra a natureza, que ela é horrível e ao mesmo tempo admirável. Ele o disse em uma só palavra: Monstrous.

O que é horrível, no ator, não é uma mentira, pois ele não mente. Não é um engodo, pois ele não engana. Não é uma hipocrisia, pois ele aplica sua monstruosa sinceridade em ser aquilo que ele não é, e não em exprimir o que ele não sente, mas em sentir o imaginário.

O que perturba o filósofo Hamlet, da mesma forma que suas outras aparições dos infernos, é, em um ser humano, o desvio das faculdades naturais para um uso fantástico.

O ator expõe-se a perder sua face e a perder sua alma. Ele as encontra falseadas, ou não as encontra mais, no momento em que necessita delas para retornar a si mesmo. Seus traços não são recuperados, seu jeito e seu verbo permanecem excessivamente desligados, destacados, como que separados da alma. A própria alma, com muita freqüência alterada pela representação, excessivamente arrebatada, excessivamente ferida pelas paixões imaginárias, contraída pelos hábitos artificiais, pisa em falso sobre o real. Toda a pessoa do ator guarda, neste mundo humano, os estigmas de um estranho comércio. Ele tem o ar, quando retorna ao nosso meio, de quem saiu de um outro mundo.

A profissão do ator tende a desnaturá-lo. Ela é conseqüência de um instinto que leva o homem a desertar para viver sob as aparências. É portanto uma profissão que os homens desprezam. Consideram-na perigosa. Tacham-na de imoralidade, e condenam-na por seu mistério. Essa atitude farisaica, que não foi eliminada pelas mais extremas tolerâncias sociais, reflete uma idéia profunda. É que o ator faz uma coisa proibida: ele representa sua humanidade e brinca com ela. Seus sentidos e sua razão, seu corpo e sua alma imortal não lhe foram dados para que os utilize assim, como um instrumento, forçando-os e desviando-os em todos os sentidos.

Se o ator é um artista, ele é de todos os artistas o que em maior grau sacrifica sua pessoa ao ministério que exerce. Ele não pode dar nada se não se dá a si mesmo, não em efígie, mas de corpo e alma, e sem intermediário. Tanto sujeito quanto objeto, causa e fim, matéria e instrumento, sua criação é ele mesmo.

É aí que habita o mistério: que um ser humano possa pensar e tratar a si mesmo como matéria de sua arte, agir sobre si mesmo como sobre um instrumento ao qual ele deve identificar-se sem deixar de distinguir-se, agir e ser o que age ao mesmo tempo, homem natural e marionete...

... Há alguma coisa no ator que depende daquilo que ele é, que atesta sua autenticidade, que se nos impõe por sua maneira, sem fraude possível, e desde que ele surge em cena, antes que tenha aberto a boca, por sua simples presença. É essa alguma coisa que, em nosso tempo, distinguia entre todas uma atriz como a Duse. É uma qualidade da natureza, que a arte pode servir para iluminar, mas que não poderia imitar...

Que o ator nem sempre sinta o que representa, que ele represente o texto sem representar a personagem nem a situação, que ele consiga representar sem erro aparente, ou seja, mais ou menos justa e corretamente, mesmo que não seja tocado - isto é verdade. É seu fracasso. É a tendência que seguem os preguiçosos e os medíocres. É o martírio a que os melhores expõem-se todos os dias, pois nenhum deles jamais sabe se não sentir-se-á subitamente devastado pela secura em um desses horríveis momentos em que ele se ouve falando, em que se vê representar, em que julga a si mesmo e, quanto mais se julga, mais se evade.

Diderot dirá que "ele está comovido sem nada sentir".

Se ele está visivelmente "comovido" é com efeito porque ele não sentia nada. Ele estava por sentir.

A idéia de uma sensibilidade que possui a si mesma, de uma espontaneidade que se busca, de uma sinceridade que se trabalha provoca facilmente o sorriso. Que não se sorria depressa demais. Que se reflita antes sobre a natureza de um ofício em que há tanta matéria a trabalhar. A luta do escultor com a argila que modela não é nada, se a comparamos com as resistências que opõem ao ator seu corpo, seu sangue, seus membros, sua boca e todos os seus órgãos.

Imagino um ator diante do texto de um papel que ele ama e compreende, cujo caráter convém à sua natureza, cujo estilo adapta-se aos seus meios. Ele sorri de satisfação. Esse papel, ele o decifra sem esforço. A primeira leitura que faz surpreende por sua justeza. Tudo é magistralmente indicado, não somente na intenção geral, mas até nas pequenas nuances. E o autor alegra-se por ter encontrado o intérprete ideal que vai levar sua obra às nuvens: "Espere, diz-lhe o ator, ainda não o sou." é que ele não se engana com essa primeira tomada de posse em que apenas o espírito fez sua parte.

Eis que ele se põe a trabalhar. Repete o texto à meia-voz, com precaução, como se temesse espantar alguma coisa dentro de si mesmo. Essas repetições confidenciais ainda guardam a qualidade da leitura. As nuances da emoção ainda são perceptíveis para alguns auditores privilegiados. O ator, agora, possui seu papel, de memória. É o momento em que começa a possuir um pouco menos sua personagem. Ele vê o que deve ser feito. Compõe e desenvolve. Realiza os encadeamentos, as transições. Racionaliza seus movimentos, classifica seus gestos, conserta suas entonações. Olha-se e ouve-se. Destaca-se. Julga-se. Parece não dar nada de si mesmo. Por vezes interrompe-se em seu trabalho para dizer: não sinto isto. Propõe, freqüentemente com razão, uma modificação no texto, uma inversão na frase, um retoque na encenação que lhe permitiria, acredita, sentir melhor. Procura meios de colocar-se em situação, em estado de sentir: um ponto de partida, que por vezes estará na mímica, ou no diapasão da voz, em uma descontração particular, em uma simples respiração... Esforça-se por encontrar uma harmonia. Arma suas redes. Organiza a captura de alguma coisa que compreendeu e pressentiu há muito tempo, mas que lhe permanece exterior, que ainda não entrou nele, não alojou-se nele... Escuta com um ouvido distraído as indicações essenciais que lhe são dadas, do proscênio, sobre as emoções da personagem, seus móveis, todo seu mecanismo psicológico. E entretanto sua atenção parece absorvida por detalhes irrisórios.

É então que o autor, com uma polidez excessiva, pega pelo braço seu ilustre intérprete e diz-lhe ao ouvido: "Mas, caro amigo, por que não mantém o que fez no primeiro dia? Estava perfeito. Seja você mesmo."

O ator não é mais ele mesmo. E ainda não é "o outro". O que fez no primeiro dia escapa-lhe à medida em que se põe na situação de representar seu papel. Precisou renunciar ao frescor, ao natural, às nuances, e a todo o prazer que lhe causava sua animação, para realizar o trabalho difícil, ingrato, minucioso que consiste em fazer sair de uma realidade literária e psicológica uma realidade de teatro. Precisou ordenar, dominar, assimilar todos os procedimentos de metamorfose que são ao mesmo tempo aquilo que o separa de seu papel e aquilo que a ele o conduz. É somente quando tiver realizado esse estudo de si mesmo em relação à personagem dada, articulado todos os seus meios, exercido todo seu ser em servir às idéias que formou e aos sentimentos para os quais prepara o caminho em seu corpo, em seus nervos, em seu espírito, até a profundeza de seu corpo, é então que reaver-se-á, transformado, e que tentará doar-se.

Enfim o ator preenche seu papel. Não encontra nada de fútil nem de artificial. Poderia vivê-lo sem palavras. Confronta sua sinceridade com esse belo "silêncio interior" de que falava Eleonora Duse.

Eis o homem exposto no teatro, oferecido em espetáculo, posto em julgamento. Ele entra em um outro mundo. Assume essa responsabilidade. Sacrifica-lhe todo um mundo real: inquietação, mal-estar, pesar, sofrimento - ou antes, é libertado dele. Mas a atitude de seus comparsas em cena, uma reação da sala, uma desordem nos bastidores, o brilho de um refletor, a dobra de um tapete, um erro da administração, um esquecimento de acessórios, um acidente no figurino, uma falha da memória, um lapso da boca, uma queda passageira de sua força vital - tudo o ameaça, tudo está contra ele que, sozinho, tem que tudo dominar; tudo pode a cada instante interpor-se entre sua sinceridade, que nada poderia forçar quando se esquiva, e o jogo que ele tem que jogar seja lá como for. Tudo pode despojá-lo do que ele pensava ter dominado através de um longo trabalho, separá-lo da personagem que havia composto de sua substância mas que pode sofrer, como esta, alterações profundas e repentinas.

A cortina sobe e o surpreende... seu primeiro ataque se dá um pouco involuntariamente... ei-lo desunido. Eu o vejo torcer a ponta de sua gravata. Deixa um instante de sentir. Bate em retirada. Procura um ponto de apoio. Respira profundamente. Creio que vai se recuperar, porque conhece seu ofício. Você me diz que a perturbação em que o colocaram esses fúteis incidentes prova que ele não sentia nada. Eu acredito que quanto mais um ator é sensível, mais está sujeito a essas vertigens. Mas ele vai voltar a sentir... porque conhece seu ofício.

Suponhamos que não tenha deixado de sentir. Ele atinge sua plenitude. Mas essa própria plenitude, ele precisa medi-la. Ele possui uma medida da sinceridade, como possui uma da técnica. Dir-se-á que o ator não sente nada porque sabe servir-se de sua emoção? Que as lágrimas que correm e esses soluços são vãos porque só estrangulam por um instante a voz do intérprete e não alteram quase nada sua dicção? Não seria antes de admirar, renunciando absolutamente a compreendê-lo, esse admirável instinto, esse dom de natureza e de razão que, há pouco, colocava o ator desconcertado na rota de sua sensibilidade e que agora impede sua emoção de descompor o jogo dramático? Um tal jogo exige uma cabeça "de ferro", como disse Diderot, mas não "de gelo", como ele escreveu antes. Também são necessários nervos flexíveis e resistentes, e operações interiores muito rápidas e muito delicadas.

Contestar ao ator a sensibilidade, por causa de sua presença de espírito, é recusá-la a todo artista que observa as leis de sua arte e não permite jamais que o tumulto das emoções paralise sua alma. O artista reina, com um coração tranqüilo, sobre a desordem de seu ateliê e de seus materiais. Quanto mais a emoção aflui nele e o agita, mais seu cérebro torna-se lúcido. Essa frieza e esse estremecimento são compatíveis, como na febre e na embriaguez.

... "abarcar toda a extensão de um grande papel, dispor nele os claros e escuros, os suaves e os fracos, mostrar-se igual nas passagens tranqüilas e nas passagens agitadas, ser vário nos detalhes, harmonioso e uno no conjunto, e formar em si mesmo um sistema elevado de declamação... É obra de uma cabeça fria, de um profundo julgamento, de um gosto delicado, de um estudo penoso, de uma longa experiência e de uma tenacidade de memória pouco comum." Diderot tem razão: "tudo foi medido, combinado, apreendido, ordenado" na cabeça do ator. Mas se a sua representação não for mais que a expressão de sua maestria e como que a exposição de um excelente método, ou bem ele descansa na rotina ou bem dissipa-se nos jogos da virtuosidade. O absurdo do "paradoxo" é opor os procedimentos do ofício à liberdade do sentimento e negar, no artista, sua coexistência e simultaniedade.

Para o ator, doar-se é tudo. E para doar-se, é preciso antes possuir-se. Nosso ofício, com a disciplina que supõe, com os reflexos que fixou e comanda, é a própria trama de nossa arte, com a liberdade que exige e as iluminações que encontra. A expressão emotiva surge da expressão justa. A técnica não só não exclui a sensibilidade, mas a autoriza e liberta. É seu suporte e sua salvaguarda. É graças ao ofício que podemos abandonar-nos, pois é graças a ele que saberemos reencontrar-nos. O estudo e observância dos princípios, um mecanismo infalível, uma memória segura, uma dicção obediente, a respiração regular e os nervos relaxados, a liberdade da cabeça e do estômago proporcionam-nos uma segurança que nos inspira a audácia. A constância nas entonações, nas posições e nos movimentos preserva o frescor, a clareza, a diversidade, a invenção, a igualdade, a renovação. Permite-nos improvisar.

Não é monstruoso que esse ator, em uma ficção, em um sonho de paixão, possa forçar sua alma a sofrer com o seu próprio pensamento a ponto de empalidecer-lhe a face; lágrimas em seus olhos, o aspecto conturbado, a voz entrecortada, e todo os seus gestos adaptando-se em formas à concepção de seu espírito? E tudo isso por nada! Por Hécuba? Quem é Hécuba para ele ou ele para Hécuba, para que a chore?

Hamlet, ato II, cena II.

Shakespeare descreve como ator a tentativa do homem que agita-se ao fazer viver uma personagem inventada... Interpretar é antes de tudo insinuar-se no conhecimento da coisa a representar. É formar um conceito. É em seguida ter o poder de fazer entrar à força sua própria alma nesse conceito: force his soul... to his own conceit. A inteligência, iluminada pela experiência e pelo raciocínio, constrói idéias coerentes e variadas. A sensibilidade as anima e aquece. No interior e nos limites de uma concepção, a alma trabalha-se, e desse trabalho decorre a operação misteriosa, precária, submetida a toda espécie de circunstâncias e de particularidades, que vai revestir com uma exatidão cada vez maior a idéia - o que Diderot denomina: um fantasma - de formas necessárias, de signos tangíveis nos quais o espectador reconhecerá a natureza daquilo que se passa dentro do ator suiting with forms to his conceit... À medida que os signos afirmam-se, em precisão, em acento, em profundidade, à medida que tomam posse do corpo e de seus hábitos, eles estimulam por seu turno os sentimentos interiores que com uma realidade cada vez maior instalam-se na alma do ator, preenchem-na, suplantam-na. É nesse grau do trabalho que germina, amadurece e desenvolve-se uma sinceridade, uma espontaneidade conquistada, adquirida, da qual se pode dizer que age como uma segunda natureza, que inspira por seu lado as reações físicas e dá-lhes a autoridade, a eloqüência, o natural e a liberdade.

[...] E tudo isso por nada! Por Hécuba? Quem é Hécuba para ele ou ele para Hécuba, para que a chore?

Onde reside o segredo de uma imaginação que coloca o ator em pé de igualdade com os tormentos do príncipe Hamlet ou com as desgraças de édipo, incesto e parricídio?

A esta questão pode-se dar uma resposta. É a de Goethe: "Se eu, disse ele, já não carregasse o mundo em mim por pressentimento, com os olhos abertos permaneceria cego."

1928. (1)


É também natural que o ator, às vezes, entreabrindo a cortina e retirando sua máscara, goste de dirigir-se a seu público para dizer-lhe:

Eis-me aqui como eu sou, um ser humano como vocês. Não estou fora da sociedade. E nosso mundo do teatro, não pensem que seja unicamente esse império artificial cujo espetáculo lhes dá repouso das misérias do seu próprio mundo, esse lugar de festa perpétua, de bem-estar e de facilidade, no qual basta aportar para ser liberado das preocupações e por assim dizer descarregado do peso de nossa condição humana. Nossa vida é dura, implacável e devoradora.

É verdade, por um milagre mais ou menos inexplicável, o jogo teatral às vezes liberta-nos de nós mesmos, faz desaparecerem por algum tempo nossas mais cruéis preocupações e até nossa enfermidades físicas.

Mas é igualmente verdade que esse terrível jogo de nossa profissão seria o mais vil de todos se chegasse a deformar-nos, a desnaturar-nos de tal forma que o homem ordinário, o homem humano, o homem sincero, o homem do mundo ou o homem de um ofício possa dizer de nós, com desconfiança e com um certo desprezo: ah! é um ator!

Libertar o ator de seu fingimento e arrancá-lo de sua especialização degradante, entregá-lo ao mundo, à vida, à cultura, à grande simplicidade humana, fazer dele um homem entre os homens, que seu público ao aplaudi-lo não deixe de estimá-lo e que seja amado ao ser admirado, elevar a profissão de ator - como o fez Molière em seu tempo e como o fez na Rússia o grande Stanislavski - do descrédito bem merecido pelos falsos artistas, recolocá-lo no mais nobre dos planos, dar enfim ao teatro sua dignidade de grande arte e, permitam-se acrescentar, sua missão religiosa que é a de religar entre si os homens de toda espécie, de toda classe, eu ia dizer - e devo dizê-lo aqui - de toda nação, eis o que vem sendo buscado no Vieux Colombier faz dez anos.

1923. (2)

A cena é o instrumento do criador dramático.

Ela é o lugar do drama, não o dos cenários e das máquinas.

Ela pertence aos atores, não aos maquinistas e aos pintores.

Ela deve estar sempre pronta para o ator e para a ação.

As reformas que realizamos, as que ainda realizaremos tendem e resumem-se a isto: pôr um instrumento nas mãos do criador dramático, criar para ele uma cena livre, que ele possa usar livremente, diretamente, com um mínimo de intermediários.

Atualmente, é rigorosamente verdadeiro dizer que o criador dramático é um intruso no teatro, que tudo se opõe à sua concepção, ao seu esforço, à sua própria existência. Ali onde ele é escravo, é necessário que seja o mestre. Pois ele é o único mestre. E, sem ele, o teatro está hoje sem mestre.

1940. (3)

1. Excertos das "Reflexões de um ator sobre o Paradoxo de Diderot" (ed. Plon, 1928). [volta]

2. Excerto de um "Discurso ao Público" de J. Copeau, Genebra, 1923. Idem, ibidem. [volta]

3. Anotação datada de 1940. Idem, ibidem. [volta]

In Registres I - Appels, éditions Gallimard, Paris, 1974, pág. 205-215. Tradução de Roberto Mallet.